Após sair do cargo de diretor-geral da Secretaria Estadual de Educação (Seduc) com uma carta apontando 12 questões que o levaram a essa decisão, Paulo Burmann diz que sai frustrado por não ter podido ajudar mais, mas sem conflitos com ninguém. Em entrevista a GZH, o ex-reitor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) relata dificuldades para montar sua equipe e defende um esforço para desburocratizar os processos movidos pela máquina pública estadual.
Apesar de ter encerrado sua jornada de oito meses dentro da pasta, sai mantendo o sonho de retomar o projeto dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), modelo de escolas desenvolvido por Leonel Brizola, nome tradicional do seu partido, o PDT.
Como o senhor chegou à decisão de sair da Seduc?
É uma coisa que a gente já vinha conversando. Desde abril, eu venho tratando dessa pauta com a secretária, com a Casa Civil, com a direção do partido. Explicando as dificuldades que nós estamos tendo, né? Eu sou um homem de trabalho. Venho num ritmo de atividade intensa, de transformações, de contribuições para a educação. Quando você vê o seu espaço se limitando a cada dia, se fechando, sobra pouca perspectiva.
Essa limitação que o senhor sentiu surgiu nos últimos meses?
Quando eu cheguei, eu já percebi isso. No final dos primeiros 15 dias, eu já comentei isso com a secretária, que a minha função não estava definida, que eu precisava de uma definição pra saber o que eu ia fazer, até pra não atrapalhar o andamento das coisas. A combinação foi de ir ajustando isso, organizar, e assim os dias foram se passando e as coisas acontecendo. Tive mais uma ou duas conversas com ela, levei a conhecimento do partido ainda em abril e, em maio, levei a conhecimento da Casa Civil: “a situação está assim, meu espaço está limitado, eu não tenho ninguém trabalhando comigo e isso vai me impedir de fazer qualquer coisa, por isso, eu acho que tem que se tomar alguma providência”. A resposta foi que em seguida aquilo seria resolvido, "já estamos equacionando, sim, monta a tua equipe, indica os nomes, nós vamos garantir que as coisas andem”. Se passou maio, se passou junho e nada disso aconteceu.
Por que o senhor acha que isso aconteceu?
Não sei exatamente qual a razão. Eu acho que são projetos conflitantes de educação, e eu tenho que respeitar isso, porque, afinal de contas, um governo democraticamente eleito tem todo o direito de propor as suas políticas. Mas quando propõe a composição de uma base de governo, há de se entender que essa composição precisa emprestar uma contribuição também. Eu tenho um carinho muito grande pela área da educação, se não fosse isso, eu estaria atuando livre, leve e solto na iniciativa privada, porque eu tenho possibilidade profissional para isso, minha formação profissional me garante isso. Então, acho que está tudo bem, mas não me resta outra alternativa que eu não seja essa, mesmo. Digo isso muito respeitosamente. A saída foi tranquila, não foi tumultuada, tive a conversa, todos os pontos que eu elenquei na minha publicação foram apresentados para a secretária, para o secretário Artur Lemos, está todo mundo ciente disso.
A secretária diz que não recebeu essa carta.
Ela não recebeu, mas eu pontei todos os 12 pontos. Talvez não tão didaticamente colocados, mas todos esses aspectos foram abordados junto a ela. Então, ninguém pode se achar surpreso com isso. Além disso, a Casa Civil recebeu (essa carta) na terça-feira (3), através da direção do partido e da bancada dos deputados. Então, não há nenhuma surpresa nesse processo.
O senhor acredita que as divergências se devem ao fato de os dois lados terem visões diferentes sobre no que se deve investir na educação, e não sobre irregularidade?
Não, do meu ponto de vista, a questão é a visão, realmente, de projeto político para a educação. Eu, quando olho um pouco mais amiúde a realidade das escolas, especialmente nas periferias e na zona rural, não consigo aceitar que a burocracia seja capaz de deixar de atender essas crianças, esses jovens, que, na minha concepção, são o presente e o futuro do país. É verdade, temos uma burocracia muito densa, que é uma burocracia estúpida, e olha que eu trabalhei no serviço público por alguns anos. Enfrentei a mesma legislação na universidade, e nós não tínhamos esse grau de dificuldade para a implementação das ações. A burocracia no governo do estado é assustadora. A burocracia tem que servir ao cidadão, não ao interesse da máquina governamental.
Em seu entendimento, deveria haver uma reforma para evitar essas burocracias?
O governo tem maioria na Assembleia Legislativa e pode determinar um processo nessa direção, da desburocratização. Só não podemos ficar quatro anos estudando um plano de desburocratização. Se não, a gente coloca a burocracia dentro do processo de desburocratização. Eu, hoje, não estou em posição de fazer esse tipo de observação, mas, já que tu me provocaste, eu faço a minha leitura do quadro, até como elemento de contribuição para o próprio governo. Todos os pontos que eu apontei foram exatamente nessa direção. Eu estive aqui por sete, oito meses, e anotei isso, isso e isso. Acho que é bom que vocês prestem atenção nisso. É só esse o recado. Não é uma queixa, não é nada. É uma responsabilidade minha como servidor público, que eu preciso ter. O que eu fiquei fazendo por oito meses? Pelo menos, vou deixar registrado: precisa mudar isso, precisa mudar isso, precisa mudar isso. E eu confesso que nunca fiz segredo sobre qualquer um desses pontos. Quando eu tive alguma das poucas oportunidades, eu manifestei isso em todos os momentos onde me foi permitido. Eu faço de forma respeitosa. A secretária é altamente competente, capacitada tecnicamente, mas tem uma visão política diferente da minha. Tão diferente, que não foi possível conciliarmos. Se a visão da secretária é a visão do governo todo, não posso afirmar. A verdade é que há um descompasso entre o que o PDT pensa para a educação e o que o governo do Estado está propondo e fazendo para a educação.
O que o senhor gostaria de ter feito, que não foi possível fazer?
Olha, tudo está colocado nesses 12 pontos que nós tratamos ali. Mas eu acho que é fundamental que a ideia do CIEPS como modelo de escola emancipadora, formadora de cidadãos e cidadãs, de resgate dessas crianças e jovens, precisa ser retomada. Veja que esse modelo surgiu no início dos anos 1990, com o Brizola e com o Collares. Aqui no Rio Grande do Sul, foram 94 unidades construídas em zonas de periferia. Algumas delas, hoje, estão absorvidas pelos grandes conglomerados urbanos. Mas, de qualquer forma, os prédios estão lá. O que os governos que sucederam ao Collares fizeram foi tentar matar a ideia. Não conseguiram, mas boa parte daquele ideário que orientava a história do CIEPS, a ideia do CIEPS, tudo aquilo está sendo apagado a cada ano que passa.
O senhor não concorda com o investimento no ensino de tempo integral na etapa do Ensino Médio?
Onde nós mais precisamos dele é no Ensino Fundamental. E é essa lógica que eu não consigo acompanhar. No Ensino Médio, o que o governo está tentando fazer, e corretamente, é dar algum viés de formação profissional, que eu acho importante, a preparação desses nossos jovens para a vida, oferecer-lhes um processo de formação mais consistente através do ensino técnico profissionalizante. São projetos corretos, mas isso exige investimentos, exige infraestrutura. Tem que ser uma coisa muito bem estruturada. Isso que eu defendo com todas as letras, a ideia de uma federalização do sistema de educação. Por que nós temos os institutos federais, as escolas técnicas federais e algumas escolas técnicas municipais e estaduais que funcionam com muita qualidade? Por que todo o sistema não funciona assim? Eu acho que a educação não pode fazer um voto de pobreza. A educação exige investimentos, investimento para o futuro desse país. Não há saída para o país que não seja através da educação. A gente está cansado de falar isso. Quando a gente elege a educação como prioridade, isso tem que ser uma verdade de fato. Em três anos, Collares construiu 94 CIEPS, com a mesma legislação, com a mesma burocracia. Por que nós vamos conseguir resolver isso agora? Eu não falo só do governo do Estado. Falo de outras instâncias também. Parece que o Estado brasileiro está sendo absorvido pela ideia da burocracia, que ninguém quer se comprometer ou se responsabilizar por nada. Ser gestor público exige um pouco de coragem e de audácia. Isso não significa que não tem que cumprir a lei. Pelo contrário, o cumprimento da lei é uma exigência. Mas a gente não pode ser mais legalista do que o rei.
O programa Lição de Casa, de recuperação das estruturas das escolas, não dá a agilidade que o senhor entende que poderia haver?
É muito cedo para fazer uma avaliação do Lição de Casa, porque ele é recente. A verdade é que o Lição de Casa pegou obras em andamento. Os resultados já estão surgindo, o que é importante. Tudo o que se fizer nessa direção é necessário e importante. No entanto, o passivo é muito maior do que o Lição de Casa, nos modos em que é capaz de absorver. São 30 anos onde as coisas foram sendo empurradas para a frente, jogadas para o próximo governo. Não vamos fazer proselitismo em cima de um assunto tão sério, tão delicado, tão nobre quanto a educação. Eu saio da Secretaria com preocupações. Preocupações para comigo mesmo, até a minha incapacidade de ajudar mais.
O senhor diz na carta preocupa o elevado volume de recursos empenhados em consultorias. A secretária Raquel diz que não se gasta dinheiro com consultorias, e que, talvez, o senhor estivesse falando sobre avaliações. Sobre o que o senhor está falando?
A consultoria é uma moda no modelo de gestão, e isso causa alguma curiosidade em relação ao porquê de toda a gestão pública ter que trabalhar com consultoria. E por que essas consultorias têm que ser tratadas com empresas que, talvez, não tenham exatamente a dimensão da realidade de uma região, de uma instituição? Eu falo disso porque, quando estive na universidade, também houve algumas tentativas de realização de consultorias. E nós conseguimos resolver grande parte delas com soluções internas. O Estado do Rio Grande do Sul, a Secretaria da Educação, tem pessoal técnico capacitado, instituições do nosso entorno, públicas ou privadas, que podem tranquilamente resolver essas questões. Essa é a minha observação.
Sua questão não é com o gasto de dinheiro com essas consultorias, então?
Deveria se priorizar parcerias com instituições gaúchas e com a própria estrutura do Estado. Nós temos milhares de professores, por exemplo, que conhecem a educação como poucos conhecem, com os problemas e as dificuldades. Uma das grandes dificuldades do serviço público é prospectar talentos, qualidades e competências. Sempre a gente encontra dificuldade de prospectar, mas é preciso também ousar nesse campo. Identificar, fazer esse trabalho de busca dos talentos, dos valores, das competências. Mas, para isso, também temos que ancorar essas ações e ter gente capacitada, competente, tecnicamente, didaticamente, psicologicamente, politicamente.