A única Casa do Estudante Indígena (CEI) planejada e construída dentro de uma universidade no Brasil fica na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), na região central do Estado. Com capacidade para 96 estudantes, hoje abriga representantes de 18 etnias indígenas do país, entre elas guarani mbyá, kaiowá, caingangue, terena, xakriabá e tupiniquim.
Inaugurado em 2018, o prédio tem três andares, com uma área total de 1.244,16 metros quadrados. Ainda faltam ser erguidos outros dois edifícios do mesmo tamanho e uma área de convivência. A CEI foi colocada em pauta em 2014 pela Comissão de Implementação e Acompanhamento do Programa Permanente de Formação de Acadêmicos Indígenas (CIAPPFAI). O projeto foi aprovado no ano seguinte.
Entre as lideranças indígenas que auxiliaram no processo dentro da UFSM, estava o líder caingangue Augusto Ópẽ da Silva, morto em 2014. Líder de uma comunidade caingangue em Iraí, no norte do Estado, Augusto destacou-se no país por lutar pelos indígenas. Foi ele quem criou a CIAPPFAI, responsável por pautar na universidade as reivindicações dos povos originários. Por isso, a CEI-UFSM tem o nome dele, como um sinal de reconhecimento à liderança decisiva nas conquistas dos estudantes indígenas.
— Por mais longe que os estudantes possam estar das suas aldeias de origem, aqui queremos que eles se sintam em casa, mais à vontade — explica o cacique caingangue Natanael Claudino, atual presidente da CIAPPFAI.
No prédio, além dos estudantes indígenas solteiros, hoje vivem no local seis casais e sete crianças. No estatuto de convivência criado pelos próprios indígenas, uma das principais exigências é não acolher não indígenas no local. O prédio só aceita casais indígenas e ambos estudando na universidade.
Segundo a pró-reitora de Assuntos Estudantis da UFSM, Gisele Guimarães, as 96 vagas devem ser preenchidas nos próximos dois anos. Por isso, a necessidade de construção dos prédios restantes.
— É um indicador de sucesso porque os indígenas estão procurando a universidade por se sentirem acolhidos. Em dois anos, provavelmente, não teremos mais vagas. Este é um espaço para que eles possam manter, cultuar e, inclusive, fortalecer a identidade deles dentro da nossa universidade. O nosso movimento todo é para que eles continuem, de fato, com as suas culturas, as suas tradições. Com eles mais fortes, a gente ganha muito — ressalta a pró-reitora.
Uma das lideranças da CEI, a estudante de Odontologia Roseni Mariano, 36 anos, da etnia guarani, mora no local com o marido, Edemar Sales, 40 anos, que é caingangue, professor em duas aldeias de Santa Maria e estudante de Educação Física na UFSM, e o filho de 13 anos. As memórias das duas etnias estão registradas em grafismos nas cores preto e vermelho nas portas do apartamento que a família divide na casa. As cores representam, segundo Roseni, resistência e força, algo que ela garante ser importante também para os estudantes indígenas. Inclusive, um dos desejos de Roseni e dos colegas da casa é tirar do papel o projeto de fazer pinturas e grafismos ao redor do prédio homenageando todas as etnias existentes no Brasil, mas até agora não conseguiram parcerias para obter as tintas e os equipamentos necessários para pintar.
— É para mostrar que este bloco é diferente, que tem esta diversidade cultural dentro da UFSM. Que eles precisam conhecer. E para marcar território dentro da instituição e nos fortalecer como povo indígena dentro da UFSM — explica a universitária.
Roseni e Edemar devem se formar em 2023 e, a partir disso, os dois terão dois meses para deixar a casa. Com planos, Roseni, que é da Terra Indígena Guarita, em Tenente Portela, no noroeste gaúcho, pretende seguir morando em Santa Maria pra atender as duas comunidades indígenas locais.
Assim como Roseni e o marido, o estudante de Farmácia William Gama, hoje com 28 anos, foi um dos primeiros a ir morar na CEI. Em 2018, ele enfrentou três dias de ônibus de São João das Missões, em Minas Gerais, até Santa Maria na tentativa de obter a única vaga reservada a indígena no curso. Aprovado, se tornou o primeiro de sua família a ingressar na universidade.
— Ter uma casa do estudante indígena é importante para preservar a cultura. Aqui na casa temos mais de seis povos. Sabemos que a realidade de quem vive numa aldeia é diferente da cidade. E os brancos não têm o entendimento. Por exemplo, no meu povo predomina a reza. Não tem como eu sair da aldeia, morar com os brancos e fazer minhas rezas, minhas pinturas. Eles se incomodam. Aqui, consigo manter a minha cultura, os meus rituais, as minhas comidas e as nossas festas — relata William.
Oriundo da etnia xakriabá, William tem como nome indígena Krânípî, que significa grande sábio. No quarto do terceiro andar do prédio, ele guarda com carinho o seu primeiro cocar, ganhado ainda na infância, e vestimentas de sua etnia, para se sentir mais próximo de seu povo. Mesmo sentimento tem ao pintar o rosto com grafismos que representam o fortalecimento do espírito e a conexão com a ancestralidade. Com a formatura prevista para 2024, devido ao atraso por conta da pandemia, William pretende trabalhar em alguma aldeia indígena xavante ou xerente, no Tocantins.