Nas escolas públicas inseridas diretamente em comunidades vulneráveis, os efeitos da pandemia foram ainda mais profundos. Nestes locais, como citam os especialistas ouvidos nesta reportagem, a falta de iniciativas diferenciadas para atingir alunos tornou a ação do poder público praticamente ineficiente.
No coração do bairro Bom Jesus, a famosa Bonja, em Porto Alegre, Elizabeth dos Santos Masera dirige a Emef José Mariano Beck. Ao ser questionada sobre como tempo em casa afetou o ensino, ele é taxativa. As decisões vindas de órgãos como o Ministério da Educação não previam a falta de acesso à internet em localidades vulneráveis.
— A ordem era transferir todo o ensino para o online, mas isso não é possível aqui na nossa comunidade. Tem famílias com três filhos na escola e um celular só em casa, como todas essas crianças iam dividir o aparelho? — questiona a diretora.
A saída que a instituição decidiu seguir, por conta própria, foi focar na entrega de kits escolares com material didático. Cerca de 10 mil kits foram entregues durante a pandemia, conta Elizabeth. Só que a distância dos alunos do ambiente escolar prejudicou diversas outras pontas da aprendizagem. A diretora cita que muitas atividades eram feitas pelos pais e entregues na escola.
Os níveis diferentes com que a escola conseguiu atingir os estudantes retornam agora para as salas de aula, com perceptíveis diferenças na aprendizagem entre as turmas. Na Emef Mariano Beck, cerca de 800 alunos se dividem entre manhã e tarde. Um pequeno número também frequenta a escola no turno da noite, mas na modalidade de Educação para Jovens e Adultos (EJA).
— Temos notado uma grande inconstância emocional, insegurança. Os professores também estão desacostumados a atender tantos alunos juntos de novo. Está sendo uma readaptação bem difícil, mas seguimos trabalhando — pontua Elizabeth.
Na entrada da escola, um cartaz já anuncia que duas turmas estão sem aula por falta de professor. Para tentar atender aos alunos afetados pela pandemia, uma das saídas são as turmas de correção de fluxo. O atendimento contempla estudantes do 5º ano — que estavam no 2º ano em 2019.
Durante este e o próximo ano, estes jovens terão juntamente com aulas normais para sua idade, disciplinas de alfabetização e letramento básico. Ao final destes dois anos, os alunos podem ser encaminhados para o 7º ano, como seria o caminho natural, ou para o 6º ano. Assim, a correção de fluxo pode ou não ser uma espécie de "ano extra". Essa é uma das saídas defendidas pelo professor da UnB, Francisco Thiago:
— Muito se fala que precisamos recuperar o tempo perdido. Mas, como fazer isso num ano só? Será que precisa fazer num ano só? Oferecer anos extras é sim uma opção. Um outro caminho, o tempo integral, por exemplo, às vezes não é tão efetivo. Tem que ter vaga para todo mundo e não gente fora da escola só para ter aluno em tempo integral.
Um ajuda o outro
A diretora Elizabeth concorda, citando a dificuldade de, por exemplo, atrair alunos para projetos pontuais no contraturno. Muitas vezes, os pais mantêm os filhos em outros projetos sociais no turno inverso ao da escola como maneira de manter o recebimento de benefícios sociais. Por isso, o foco da instituição tem sido atender da melhor maneira quem pode ir à escola no turno disponível.
Um ponto importante citado por especialistas é a reformulação da estrutura da escola, com turmas menores e salas de aulas com disposição diferente das carteiras, colocando os alunos para aprenderem juntos e tirando o professor do papel de disseminador único do conhecimento. E na turma de 2º ano da Emef José Mariano Beck essa cena já é notável. Separados em grupos, os alunos fazem as atividades expostas pelas professoras, mas se auxiliam nas dificuldades.
— Eles aprendem a buscar maneiras de solucionar os conflitos que estão enfrentando. E também sentem que podem ser agentes participativos da educação e não apenas ouvintes do que o professor fala — pontua Sandra da Silva Luza, professora da escola na Bonja.
O pequeno Guilherme Rafael Lucena de Souza, oito anos, não esconde a felicidade de ter retornado para a escola. Em casa, ele diz que pergunta sempre à mãe quando são os dias de ir ao colégio e que gostaria de poder vir aos finais de semana ou feriados.
É o retrato de um aluno que também relata como foi difícil acompanhar as aulas de casa. Sem acesso constante a um celular ou à internet, Guilherme fazia as atividades impressas enviadas pela instituição. Usava a cama dos pais para conseguir estudar, era o espaço mais adequado na casa, diz ele. Além dele, outros dois irmãos compõe a família, além dos pais.
A mãe de Guilherme recorda como o filho manifestava a falta da escola na rotina. Auxiliar de limpeza, Andréa Raquel Machado de Lucena, 29 anos, conta que estudou até o 7º ano, o que impossibilitava de tentar auxiliar tanto o filho nos trabalhos escolares. Ela compartilhava com ele a dificuldade para leitura ou escrita.
— A volta dele à escola está sendo ótima. Ele gosta, se sente feliz e também é importante para nós, pais. Lugar de criança com oito anos é na escola, eles precisam desse apoio de professores para aprender — conta Andréa.
Desafios estruturais também limitam trabalho
Se nas escolas municipais visitadas pela reportagem os problemas causados pelo tempo em casa estão na aprendizagem dos alunos e no estado psicológico de professores, no ambiente estadual isso ainda é impulsionado por problemas estruturais das instituições.
É o caso da Escola Estadual de Ensino Fundamental Lídia Moschetti, no bairro Costa e Silva, na zona norte da Capital. Quando os alunos retornaram em modelo híbrido no ano passado, um dos prédios da instituição precisou ser interditado depois que uma janela caiu sobre um aluno. O prédio onde ele estudava deveria ser provisório, mas abrigava estudantes há mais de duas décadas, contam professores.
Constituída em maior parte de madeira, a instituição sofre com a falta de manutenção e reformas. O prédio interditado não tem mais condições de uso, partes dos forros caíram e buracos no telhado deixam o espaço exposto às goteiras. A Secretaria Estadual de Educação (Seduc) diz que a reforma do prédio está "está em análise na 1ª Coordenadoria Regional de Obras Públicas (Crop)".
— Tivemos que adaptar essas salas de aula em outros lugares, como biblioteca e sala de vídeo, que viraram espaços de sala de aula — pontua a diretora da instituição, Luciana Marques.
Os professores contam que a participação da Seduc ficou restrita a projetos de formação dos professores, sem programas direcionados aos alunos. Além disso, as formações exigidas pela secretaria demandam que os professores usem o tempo em que deveriam estar descansando para concluir as qualificações. O que gera ainda mas sobrecarga, pois a escola também têm déficit de docentes.
A pasta da Educação estadual garante que será feita uma nova contratação emergencial para suprir a demanda de um professor faltante de Ciências. "Já a disciplina de Educação Física será suprida pelo próprio quadro de recursos humanos da instituição", explica a secretaria. Mas, não foram dados prazos para a chegada dos professores.
Entretanto, é notável que as avaliações feitas com os alunos a pedido da Seduc ainda não foram revertidas em grandes projetos diretamente pensados para os alunos. Uma demonstração da demora na ação dos poderes públicos em agir, como citam especialistas.
Saúde mental necessita de atenção
Professora do 5º ano no Lídia Moschetti, Daniela Pereira Staziacki é ex-aluna da escola. Ela conta que, além da cor dos prédios da instituição — hoje azul, diferente do laranja da época em que docente estudou ali —, praticamente nada do espaço mudou para melhor.
Para a vice-diretora do turno da manhã, Vera Aguiar, as escolas têm conseguido atravessar esse período muito mais por iniciativas próprias do que por conta de políticas externas. A pesquisadora da Feevale, Lisiane Menegotto, pontua como a saúde mental de alunos e professores precisa de atenção neste momento:
— A psicologia escolar é fundamental nessa engrenagem, junto com a pedagogia, tem que ser um trabalho interdisciplinar. É a psicologia que vai acolher esse campo mais prejudicado pela pandemia, dos alunos, professores e pais que estão manifestando as angústias acumuladas nesse tempo de isolamento. São os efeitos de sofrimento, de defasagem nessas relações que ficaram tanto tempo comprimidas.
No Lídia Moschetti, por exemplo, um projeto entre a escola e a alunos de psicologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde (UFCSPA) presta atendimento uma vez por semana, na escola, para a comunidade escolar. É uma iniciativa entre e a escola e universidade, que não teve envolvimento da mantenedora.
Mais professores, menos alunos
Salas de aulas com grupos menores de alunos e mais professores direcionados para o atendimento dos estudantes, principalmente, nos anos iniciais. Esse é um dos caminhos possíveis para o melhor atendimento de alunos que têm apresentado dificuldades de alfabetização e outras demandas básicas da educação. Porém, a professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Patrícia Camini, pontua que isso deve ser uma revisão do modelo escolar atual.
Como exemplos, ela cita sistemas adotados em países como Argentina e Portugal. No país vizinho ao Brasil, alunos nos primeiros dois anos da escola têm aula com dois professores durante a alfabetização. A ideia é que um possa atender o grupo de maneira mais geral, enquanto outro identifica as especificidades, aqueles estudantes que precisam de atenção especial. No caso de Portugal, Patrícia cita um projeto que foca em "salas de aula do futuro", com disposição diferente de mesas e cadeiras, além de agregar tecnologias ao ambiente de aprendizagem.
— É importante diferenciar isso de projetos pontuais que temos aqui. A ideia é que seja algo constante, não é um professor monitor ou volante, é ter dois professores na sala sempre. São medidas que requerem investimento público — cita Patrícia.