Uma recente portaria do Ministério do Trabalho procurou impedir a demissão por justa causa de trabalhadores que se recusam a tomar a vacina contra a covid-19. Apesar disso, na avaliação de juristas e professores de Direito Constitucional consultados por GZH, o princípio de preservação da saúde pública admite a adoção de medidas contra quem opta por não se imunizar. Entre essas ações está a demissão por justa causa - que gera a perda de direitos rescisórios para o trabalhador como aviso prévio, seguro-desemprego e a multa de 40% sobre o FGTS.
Professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Eduardo Carrion admite que a discussão sobre a demissão dos não vacinados envolve uma “colisão de direitos”:
— Há uma colisão entre o direito à livre escolha, por um lado, e a saúde pública. Mas o que deve predominar em uma situação de pandemia, que oferece risco à sociedade? Não se pode obrigar alguém a se vacinar, mas podem ser criados constrangimentos como passaporte vacinal.
O constitucionalista observa que o empregador deve buscar medidas que possam evitar uma demissão, como avaliar a manutenção do funcionário em home office, e levar em consideração eventuais justificativas médicas para não tomar as doses. Mas, se não for viável impedir o contato do colaborador com outras pessoas para o exercício da função, a preservação do bem comum permitiria ações mais firmes.
— Se o trabalho desenvolvido for em ambiente coletivo com risco de contaminação de terceiros, uma restrição por parte da empresa se torna até obrigatória. Se não houver alternativa de trabalho eficiente em home office ou um problema de saúde individual comprovado e razoável que não recomende a vacinação, cabe à empresa criar restrições e, talvez, se justifique a justa causa — completa Carrion.
O professor de Direito Constitucional e de Direitos Humanos da Faculdade Fisul Leonardo Grison acredita que o direito das pessoas de não serem contaminadas no ambiente de trabalho limita o direito de quem rejeita a vacina de não ser demitido sem as compensações previstas.
— Nunca na História se defendeu uma liberdade ilimitada. Temos o direito de não sermos infectados. Se não se imunizar fosse apenas uma questão individual, sem impacto na coletividade, daria até para discutir. Mas a decisão de não tomar a vacina gera mortes, custos para o poder público com internações, custos para a própria empresa empregadora — analisa Grison.
Em entrevista à Rádio Gaúcha na segunda-feira (1º), o vice-presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, desembargador Francisco Rossal de Araújo avaliou a portaria do Ministério do Trabalho como “polêmica”. O desembargador afirmou que o tribunal deverá começar a decidir sobre questões concretas envolvendo a medida do governo federal nos próximos meses, à medida que chegarem ações concretas para análise. Mas ressaltou que sentenças recentes em disputas semelhantes têm favorecido a prioridade à imunização:
— O tribunal já vem se pronunciando majoritariamente no sentido de que o mais importante é a vacina, que protege a todos. Viver em sociedade não é fazer o que eu quero. Ninguém pode ser obrigado a se vacinar compulsoriamente, como está no artigo 15 do Código Civil ou no artigo 5º da Constituição Federal. A proteção da intimidade, da privacidade, é um direito sagrado. Agora, todos esses direitos têm de ser pensados em relação ao direito dos os outros. Se eu não me vacino, me torno um vetor de contaminação, então o meu direito termina onde começa o do outro. Não vou ser obrigado compulsoriamente, ninguém vai pegar meu braço e aplicar uma injeção contra a minha vontade, mas também tenho de arcar com as consequências da minha decisão.
O desembargador lembrou que, em duas ações recentes, o Supremo Tribunal Federal (STF) admitiu o direito de qualquer cidadão não tomar a vacina, mas também reconheceu a possibilidade de que seja submetido a sanções por isso.
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Entidades empresariais vão analisar portaria
Entidades empresariais dentro e fora do Rio Grande do Sul vão discutir de forma mais aprofundada a portaria do Ministério do Trabalho que procura impedir demissões por justa causa de trabalhadores que rejeitam a vacina contra a covid-19.
A Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs) informou, por meio de nota, que “vai analisar o assunto nos próximos dias no Conselho de Relações de Trabalho da entidade”. O tema também será tratado em breve pela Federação do Comércio de Bens e Serviços do Estado (Fecomércio-RS).
— É um tema bastante complexo, sobre o qual vamos discutir nesta quarta-feira (3) — afirma o presidente da federação, Luiz Carlos Bohn.
Procurada por GZH, a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) também comunicou por meio de sua assessoria de comunicação que “o tema está sendo consultado internamente e junto às associadas”. Uma das empresas vinculadas a associação, a Gol anunciou que começaria a demitir nesta semana quem não se imunizou contra o coronavírus.
MPT-RS defende campanhas de conscientização
Na análise da procuradora do Ministério Público do Trabalho do Estado (MPT-RS) e integrante do GT covid da entidade, Priscila Dibi Schvarcz, a portaria "extrapola o poder regulamentar conferido aos ministros de Estado", previstos pela CLT, e que a vacinação contra a covid-19 é uma "política pública de saúde coletiva que transcende os limites individuais".
A procuradora ressalta que a entidade, por meio de um guia de vacinação publicado em janeiro, "defende a possibilidade de caracterização da justa causa (em casos de demissões), desde que seja feita ampla campanha de conscientização dos trabalhadores acerca dos benefícios da vacinação".
"Lembro, ainda, que a Constituição Federal, em seu art 7°, impõe aos empregadores o dever de reduzir os riscos inerentes ao trabalho. Isso significa que devem ser implementadas técnicas e medidas com o objetivo de garantir que os trabalhadores possam realizar suas funções protegidos contra a concretização dos riscos ocupacionais identificados no ambiente de trabalho e, nesse contexto, pode ser enquadrada a vacinação como medida de proteção da coletividade dos trabalhadores de uma determinada empresa", pontuou em nota.
* Colaborou Bruna Viesseri