A rede estadual de ensino completa nesta quinta-feira (25) cem dias de suspensão das atividades presenciais nas escolas por causa da pandemia de coronavírus. O cenário, na véspera da data, é de professores sobrecarregados, sem conseguir operar direito a plataforma digital da Secretaria Estadual da Educação (Seduc) e tendo que utilizar equipamentos próprios, além de alunos com dificuldade para conseguir vencer o conteúdo de forma adequada.
Mas, se falta estrutura, sobra vontade. Confira as histórias das professoras Rosilene e Alaides e das estudantes Ângela e Sabrina, que são um recorte do que ocorre na prática no ensino público durante a pandemia, e o que diz o governo do Estado sobre os problemas apontados.
Rosi e o esforço para ensinar
O apartamento do quarto andar de um prédio localizado na Rua Sargento Sílvio Delmar Hollenbach, bairro Jardim Leopoldina, em Porto Alegre, virou extensão da Escola Antão de Faria, encravada numa das comunidades mais pobres de Porto Alegre, o bairro Bom Jesus, e fechada em razão da pandemia. A sala do imóvel da professora Rosilene dos Santos Coitinho, 43 anos, virou recinto de aula. Sem alunos fisicamente, mas com muitos deles presentes virtualmente.
— Tem dias que eu trabalho até 16 horas — conta a "sora Rosi", como é chamada pelos alunos.
Rosi tem uma carga horária contratual de 40 horas semanais de matérias de humanas, e afirma que às vezes vira a madrugada trabalhando. Na sala, o sofá servia de mesa para atividades impressas, lado a lado, tudo bem organizado.
— Essas eu imprimo para entregar todas as quintas-feiras, na escola, para os alunos que não têm acesso à internet — diz.
Ela estima que cerca de 40% dos estudantes das suas 16 turmas do Ensino Fundamental e Médio seguem desconectados. Segundo a docente, até no trabalho de alguns alunos já entregou material.
O celular, um projetor de imagens, um notebook e duas impressoras são seus instrumentos de trabalho ao logo das jornadas diárias. O telefone serve de roteador de internet para o computador:
— Eu tenho dois planos de internet e os utilizo para dar aulas.
Enquanto isso, as mensagens no WhatsApp de Rosi pipocavam. Eram mães de alunos, os próprios estudantes e colegas de escola tirando dúvidas e trocando informações sobre a rotina de ensino durante a pandemia.
Os alunos não conseguem validar o e-mail e não conseguem entrar nas salas virtuais. Tem alunos e professores sem internet. Tem professor sem celular ou com celulares ruins para as aulas
ROSILENE DOS SANTOS COITINHO
Professora na Escola Antão de Faria
A nova plataforma digital disponibilizada pelo governo do Estado, Google Classroom, não tem sido usada por Rosi porque, segundo ela, os alunos não estão conseguindo se cadastrar. A dificuldade não impede a professora de buscar outros meios para passar o conteúdo. Utiliza a plataforma anterior da Seduc e passa conteúdo em grupos de WhatsApp e em páginas criadas no Facebook.
— Os alunos não conseguem validar o e-mail e não conseguem entrar nas salas virtuais. Tem alunos e professores sem internet. Tem professor sem celular ou com celulares ruins para as aulas — conta.
Além de links de vídeos postados em plataformas como o YouTube, Rosi utiliza filmes para reforçar o conteúdo de história. Se alguém tem dificuldades de acesso, ela dá um jeito:
— Eu tenho Netflix. Quando precisamos ver um filme, dou minha senha aos alunos. Compartilho também a minha internet com alguns alunos. Acredito que para eles deve estar sendo muito difícil.
O projetor instalado na sala do apartamento para transmitir o conteúdo lança imagens em uma das paredes brancas. Para se fazer entender pelos alunos, ela forma grupos de 10 no WhatsApp para chamadas de vídeo. O suporte do celular é uma caneca térmica de café.
— O governo tem que me dar um celular ao final de tudo isso, de tanto que eu uso — brinca.
Natural de Miraguaí, a professora chegou a Porto Alegre aos 17 anos. Recém-completado o quinto ano do Ensino Fundamental, trabalhou como doméstica. Foi então que sua chefe a motivou a estudar. Se formou em licenciatura plena em História.
Rosi não vê a hora de as atividades presenciais serem retomadas. Mas uma preocupação que a aflige é com os estudantes que vão prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem):
— Eles sabem que é desleal essa corrida deles na educação (em comparação aos estudantes do ensino privado). Muitos estão desistindo. Como eles vão competir no Enem? É bem complicado. Tem que ser muito autodidata para conseguir sozinho.
Ângela e a busca pelo Ensino Superior
Desde o início das aulas remotas, Ângela Senedi da Silva, 17 anos, deixou de ir a pé para o trabalho. A medida era necessária para que sobrassem passagens no cartão TRI, viabilizando o transporte para a escola, à noite. Os benefícios do ensino a distância para a estudante do Instituto Estadual Rio Branco, porém, terminam aí. Sem computador em casa, a adolescente organiza as atividades em uma folha de papel pautada e preenche à mão os questionários copiados da tela do telefone celular.
— Se eu tivesse um notebook seria, ó, dois toques — compara, ao estalar os dedos em sinal de agilidade.
Aluna do terceiro ano do Ensino Médio, Ângela rola o dedo sobre o smartphone e acessa, com um toque, os espaços virtuais da Google Classroom. Um código referente a cada disciplina foi enviado pelo colégio no grupo de WhatsApp criado juntamente com os alunos, o que permite o controle de quem tem acesso aos conteúdos. Na pasta, há caminhos para pesquisas online e a opção de imprimir as perguntas – ignorada pela falta de impressora na residência.
Desde que foram suspensas nas escolas, em 19 de março, não houve qualquer aula ao vivo pela internet, subterfúgio utilizado por muitas instituições privadas. A criatividade e boa vontade dos professores não superam a falta de interação, segundo a menina.
— Eu sempre fui boa de matemática, mas sem ter como tirar dúvida na hora, não consigo absorver o conteúdo — lastima.
A garota, de cabelo vermelho trançado, sonha em se formar em moda e colocar em prática o estilo próprio de enxergar a beleza: roupas voltadas ao público plus size, produzidas com o mesmo esmero dispensado a peças para quem tem o perfil “padrão” da indústria, como avalia os modelos fabricados para mulheres magras.
Com renda familiar limitada - a própria adolescente paga a internet, cursos e material escolar com o salário de recepcionista -, o objetivo de alcançar o diploma é vislumbrado a partir de uma das bolsas estudantis oferecidas por meio do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A concorrência na edição 2020 do exame – ainda sem data definida pelo Ministério da Educação (MEC) – será “ainda mais injusta”, segundo sua mãe, a auxiliar de serviços gerais Luanda Senedi da Silva, 37 anos, que criou, sozinha, a menina e o irmão no bairro Bom Jesus, na zona leste da Capital.
Eu sempre fui boa de matemática, mas sem ter como tirar dúvida na hora, não consigo absorver o conteúdo
ÂNGELA SENEDI DA SILVA
Aluna do Instituto Estadual Rio Branco
— Imagina a diferença de quem está no topo da pirâmide econômica e de quem tem pais que, por exemplo, não têm Ensino Fundamental e não sabem nem anexar um arquivo no e-mail para o filho? — compara Luanda.
A referência ao correio eletrônico se deve à forma de envio dos trabalhos solicitados pelos professores de Ângela. Após realizar as atividades à caneta, em uma folha de papel pautado, ela fotograva as respostas e envia por e-mail para os docentes. Não há nota para a avaliação, que serve como confirmação de presença e regularidade do aluno à classe.
Ansiosa, a estudante interrompe a contagem dos novos trabalhos ao chegar ao número de 15. Outros 30 foram completados até a segunda quinzena de junho. Para não ficar pra trás, o apoio recebido em casa se mostra indispensável. A mãe também está matriculada para prestar o Enem, e com a mesma meta: uma vaga no Ensino Superior.
Alaides e as jornadas intermináveis
Colega de escola da professora Rosi, Alaides de Souza Santos, 57 anos, é professora do primeiro e segundo anos do Ensino Fundamental. Sua rotina, calcula, é de cerca de 15 horas de trabalho por dia, sendo que seu contrato emergencial – prorrogado uma vez – prevê 40 horas semanais.
Em casa, no bairro Passo das Pedras, zona norte de Porto Alegre, o marido e os filhos dão todo o apoio de que Alaides precisa para se dedicar ao trabalho. No entanto, o excesso de preocupação da professora com seus alunos também é motivo de "puxões de orelha".
— Já teve períodos em que meus filhos falaram: sai dessa área. Tu estás te matando. Mas ao mesmo tempo eles sabem que isso me deixa feliz — diz a professora.
Alaides divide o local de trabalho com o marido. De um lado, sua mesa e escrivaninha com notebook e livros dos anos iniciais. Ainda tem um armário com sucatas e outros objetos utilizados de forma lúdica com os pequenos. O canto do marido, representante comercial, é menor, mas não menos organizado.
A professora precisou trocar seu celular para dar conta da demanda das aulas remotas. O antigo não suportava tantos áudios e vídeos. Mas essa não é a realidade da comunidade do bairro Bom Jesus, onde fica a Escola Antão de Farias.
— Eu vou orientando as mães sempre pelo celular. Geralmente, trocamos mensagens em áudio para facilitar. Tem pais sem celular, sem computador. Aí, eu entrego atividades dos "sem contatos" por meio de vizinhos. Fiquei com pena uma vez. Uma mãe me disse: "Eu vou ter que resolver isso e comprar um celular. Mas não sei como vou fazer porque não tenho dinheiro".
Diferentemente dos alunos de Rosi, que entram diretamente em contato com a professora, os estudantes de Alaides são pequenos e têm de ser orientados pelos pais após receberem uma atividade da professora.
— Como alfabetizar uma criança se o conteúdo precisa ser transmitido por pais que são analfabetos, por exemplo? – questiona.
Graduada em Pedagogia e com pós-graduação em educação infantil e alfabetização, Alaides começou a trabalhar aos 14 anos, ainda em Osório, município onde viveu até a fase adulta, quando se mudou para Porto Alegre. Ela conhece bem as desigualdades entre os ensinos público e privado. Trabalhou durante 17 anos na rede privada, até fazer uma pausa por cerca de 10 anos depois do nascimento dos dois filhos.
No início das atividades remotas, Alaides teve dificuldades com a tecnologia. Mas, com a ajuda de colegas e dos filhos, agora “voa” com os eletrônicos:
— Às vezes, é cinco da manhã e a gente está em chamada de vídeo.
Os pais não estão preparados para isso. Como eles vão ajudar as crianças? Totalmente fora da realidade. A teoria é muito linda, mas a prática não é assim
ALAIDES DE SOUZA SANTOS
Professora na Escola Antão de Faria
A impressora, os cartuchos de tinta, o celular e a internet usados nas aulas são pessoais. Perguntada se os alunos conseguirão sair alfabetizados nesse ano de pandemia, não demostrou otimismo.
— Vamos encontrar dificuldade nessa sala online (plataforma do governo do Estado). O pequeno precisa do papel para absorver o conteúdo — argumenta.
Alaides elogia o Estado por disponibilizar cursos aos professaores. No entanto, diz que há uma sobrecarga ainda maior, já que a jornada de trabalho em casa é além do que deveria.
— Temos demanda grande da Seduc, como preenchimento de relatórios e cursos. Acho bom, mas, no momento, sobrecarrega. Nós também estamos evoluindo, mas o foco agora são as crianças — pondera.
A professora lembra que a maioria dos pais não consegue entrar na plataforma da Seduc:
— Os pais não estão preparados para isso. Como eles vão ajudar as crianças? Totalmente fora da realidade. A teoria é muito linda, mas a prática não é assim.
Sabrina e a luta contra a desigualdade
Na manhã desta quarta-feira (24), enquanto Sabrina dos Santos acessava o fórum de discussões no Google Classroom, a tela do computador se apagou.
— Travou, é problema de memória e custa R$ 400 pra trocar, por isso deixo assim — explica a estudante de 18 anos, na casa em que vive com o irmão, os pais e a tia, no município de São Leopoldo, próximo ao limite com Portão, no Vale do Sinos.
Devido às recorrentes panes, a máquina antiga acabou relegada pela aluna da Escola Estadual Olindo Flores da Silva. Os cadernos são o principal meio de estudo, onde os trabalhos são finalizados, fotografados e enviados de volta pela plataforma. No quarto de paredes rabiscadas e símbolos coloridos, “sem muito significado”, como admitiu, uma escrivaninha virou a carteira escolar.
Filha de pai frentista e mãe faxineira, a jovem quer se tornar a única da família com curso superior e estudar Filosofia. As dificuldades do último semestre, entretanto, tiram o ânimo de alcançar sucesso pelo Enem. A falta de interação com os colegas e mestres é listada como um dos principais entraves para crer em um ano letivo completo.
— O ano está perdido. No Enem, vai ser tudo um chute, porque enquanto parte da população tem aulas de inglês e espanhol online, a gente aqui tá preocupado em encontrar um emprego. A pandemia só aumentou a desigualdade — define.
O ano está perdido. No Enem, vai ser tudo um chute, porque enquanto parte da população tem aulas de inglês e espanhol online, a gente aqui tá preocupado em encontrar um emprego. A pandemia só aumentou a desigualdade
SABRINA DOS SANTOS
Aluna da Escola Estadual Olindo Flores da Silva
Em todo o RS, são estimadas 37 mil turmas nas atividades remotas, com mais de 300 mil ambientes virtuais divididos por disciplinas. Em um deles, os colegas de Sabrina levantaram uma discussão: como conciliar as aulas em vídeo, modelo ainda em estudo, com a rotina dos adultos empregados e que estudam na instituição? No celular, ela mostra o desabafo de o estudante, que isenta de culpa o professor. "Assim como a senhora trabalha, se esforça, muita gente tem que trabalhar fora e cuidar da casa. Ninguém está com nenhum ressentimento quanto a tua competência conosco, apenas estamos desanimados", diz parte do relato do amigo, no grupo de WhatsApp da turma do terceiro ano.
Antes de sair para o emprego no posto de combustíveis, Gilberto dos Santos, 50 anos, renova a esperança na filha.
— Ela é muito esforçada, tem uma cabeça boa, vai conseguir — diz, ao se despedir, a caminho do portão que dá acesso à rua sem calçamento.
O que diz o Cpers
A presidente do Cpers, Helenir Schürer, reclama da sobrecarga de trabalho dos professores:
— Os professores que têm 20 horas estão trabalhando mais de 40 horas planejando, organizando as aulas. Além daquelas aulas online, as aulas que têm que entregar nas escolas para os alunos buscarem. Tudo isso com uma defasagem enorme. Nós temos professores que, devido ao atraso de salário, falta de reajuste e com descontos que tivemos das greves, tiveram que cancelar, inclusive, a internet, porque não tem mais recursos para esse pagamento. Muitos têm o pacote de internet muito pequeno, e mesmo para acompanhar uma live ou uma reunião, através da web, come todos os seus dados da internet, dificultando muito o seu trabalho, porque em outro momento que precise, ele não tem — sustenta Helenir.
O que diz a Secretaria Estadual de Educação
GaúchaZH enviou uma série de perguntas à Seduc sobre os cem dias de atividades domiciliares dos alunos. Além das repostas, a pasta enviou uma nota sobre como estão sendo ministradas as aulas. Sobre a chamada ambientação digital, que prevê a inserção dos professores e alunos na plataforma Google Classroom, a Seduc afirma que ocorrerá ao longo de junho e julho. Em relação ao processo de cadastramento, diz que cerca de 400 mil usuários já tiveram suas contas efetivadas. Sobre a dificuldade de cadastro, afirma que “situações pontuais de orientação aos usuários estão sendo realizadas através do suporte das Coordenadorias Regionais de Educação (CREs). Na aba SUPORTE do hotsite, consta os e-mails de cada uma das CREs”.
Sobre a etapa de "letramento digital", que consiste no fornecimento de conhecimento aos professores sobre a preparação de aulas na forma não presencial, informa que o período foi iniciado em 22 de junho e segue até 26 de agosto. A Seduc reitera que disponibilizará, aos alunos e professores, internet patrocinada no celular exclusivamente para conteúdos educacionais. A previsão é que isso ocorra em julho.
Em relação à retomada das aulas presenciais, ainda não há prazo. Reforça que as aulas remotas serão contadas como dias letivos concluídos.
A Seduc não respondeu se professores e alunos serão ressarcidos por utilização de internet, celulares, computadores, impressoras, folhas e outros itens próprios. Disse que “todos os materiais escolares utilizados pelas instituições de ensino durante o período de pandemia, como folhas e tinta para impressão, foram custeados por meio da verba encaminhada por Autonomia Financeira mensalmente. Para os alunos e professores que não possuírem internet, o Estado oferecerá o serviço de internet patrocinada, com a disponibilização de dados para o acesso ao conteúdo educacional”.
Íntegra da nota da Seduc:
"A Secretaria Estadual da Educação informa que atualmente estão em andamento diversas ações na Rede Estadual de Educação. Desde 1° de junho ocorre a ativação das contas educacionais de alunos e professores para a realização das Aulas Remotas na plataforma Google Sala de Aula. Atualmente são mais de 440 mil contas já ativadas. Ainda, os professores passam por capacitação na etapa chamada de Letramento Digital. Esse processo visa oferecer aos professores orientações sobre o uso de ferramentas para a elaboração de aulas no formato não presencial.
Essas ações já registram quase 400 mil visualizações no canal da Seduc no Youtube (TV Seduc RS) e página no Facebook da secretaria. Também ocorrem as avaliações por parte dos educadores de atividades realizadas pelos alunos durante os meses de março e abril. Todas as ações promovidas pela Seduc têm o intuito de garantir a proteção da vida de professores, servidores e alunos."