Com as escolas de educação infantil ainda fechadas no Estado devido à pandemia de coronavírus, mães e pais que trabalham fora buscam alternativas para manterem os filhos sob cuidados. A procura por babás aumentou, mas há quem precisou recorrer aos avós, apesar de os idosos fazendo parte de grupo de risco para a doença.
A chegada do coronavírus causou reviravolta na rotina da dentista Michelle Azeredo, 42 anos, de Porto Alegre. Durante 30 dias, ela fechou o consultório dentário e cumpriu o distanciamento social ao lado do filho Pedro Susin, três anos, enquanto o marido, o também dentista Eduardo Susin, 46 anos, seguiu trabalhando numa unidade básica de saúde. No final de abril, Michelle precisou voltar aos pacientes e as dificuldades surgiram.
Como segue fechada a escola onde Pedro frequenta a educação infantil em turno integral, desde os seis meses de idade, Michelle precisou reduzir a própria carga horária de trabalho. Hoje, ela atende em apenas dois dos cinco dias da semana. Quando está em consultório, Pedro fica com os avós paternos, Denise Susin, 68 anos, e Marsinho Susin, 73 anos, que, mesmo fazendo parte do grupo de risco por faixa etária, se prontificaram a cuidar do menino.
_ Foi mais fácil ele ficar com os avós porque já está acostumado. Mantemos todos os cuidados possíveis. Não havia alternativa. Ele me pergunta porque não vai para a escola. É um momento atípico para todos nós e tem sido um período de estresse que até as crianças sentem _ conta.
Michelle cursa doutorado, e só consegue dar atenção ao curso depois que Eduardo chega do trabalho e fica com Pedro. As atividades na universidade, que eram realizadas pela manhã, precisaram ser repassadas para o turno da noite, com a compreensão do orientador.
_ O consultório ficou em segundo plano, assim como o doutorado. Primeiro, vem o Pedro _ diz a mãe.
Apesar das dificuldades em conciliar casa, trabalho e estudo, Michelle não pensa em mandar o filho para a escola em julho.
_ Vou esperar e tentar manter, pelo menos, mais um mês fora do ambiente escolar. Ainda mais neste período que está esfriando e virão as gripezinhas. A professora do Pedro, por exemplo, mora com uma senhora de 90 anos, e seria um risco para as duas. É preciso pensar no todo _ justifica.
A atual previsão do governo estadual é reiniciar as aulas presenciais no próximo mês, de forma gradual. Crianças até cinco anos e os alunos do terceiro ano do Ensino Médio seriam os primeiros a retornarem às instituições em julho, mas a possibilidade ainda está em discussão. Especialistas das áreas da educação e da saúde dividem-se no alerta de que ainda pode ser cedo para esse recomeço.
Professora e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Infância da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Sueli Salva é contrária ao retorno presencial em julho. Para ela, docentes e instituições públicas e privadas ainda não receberam formação específica de um novo protocolo de ensino. O temor de Sueli é maior com relação a gestores e professores de creches e pré-escolas. Crianças pequenas, ressalta a professora, não podem ficar em distanciamento dos adultos quando estão na educação infantil, já que objetivo é o desenvolvimento integral delas.
_ Elas precisam ser cuidadas, alimentadas, precisam de colo e aconchego, de alguém que troque as fraldas, e de sentirem segurança na relação das suas vivências e experiências. Como é que vamos prever um processo de interação precisando do distanciamento? De algum modo, fazer uma escola de educação infantil com distanciamento descaracteriza a sua principal função _ frisa Sueli.
Assim como a dentista Michelle, a advogada Ana Paula Machado, 40 anos, também da Capital, não pretende mandar a filha Helena da Silva, quatro anos, para a escola em julho.
_ Ela não tem nem noção de cuidados e, com certeza, não se cuidaria. Entraria em contato com inúmeras pessoas, com máscara ou sem máscara também é um risco, né? _ justifica a advogada.
Helena estava há um mês na nova escola quando a pandemia obrigou a instituição a fechar as portas. Os pais, ambos advogados, permaneceram em casa com a filha até o final de abril. Neste período, Ana Paula e o marido, Juliano da Silva, 41 anos, se dividiram na tarefa de cuidarem da menina. A partir de maio, quando os prazos na Justiça foram retomados, o casal obrigou-se a retornar ao escritório. Sem ter com quem deixarem a filha, recorreram para as avós materna, Alice Ferreira Machado, 73 anos, e paterna, Ema Antonina Barboza, 70 anos. Nos dias de Alice, a neta é levada para a casa da avó. Ema prefere ir ao encontro da menina, e passa o tempo inteiro de máscara e com álcool-gel por perto.
As aulas online da menina ocorrem em três diferentes horários do turno da tarde. Pelo menos, em dois deles os pais fazem questão de participar com a filha, pois acreditam que os encontros ajudam a menina a manter os laços com a professora e os colegas. No período de distanciamento social, a maior dificuldade do casal, confessa Ana Paula, foi com as tarefas enviadas pela escolinha à filha.
_ Não tínhamos didática com trabalhos escolares. A escola mandava os trabalhos e a gente passava batido, fazendo só alguns _ comenta Ana Paula.
Dinâmica escolar em casa
Presidente Nacional das Unidades Universitárias Federais de Educação Infantil, Viviane Ache Cancian, também pesquisadora e professora da UFSM, enfatiza que é preciso compreender que os pais não têm como assumirem a tarefa de professores. Segundo ela, o papel institucional se dá no âmbito coletivo e o da família, no âmbito privado.
_ As famílias têm buscado sem reinventar, neste momento, mas não têm como seguirem um cronograma. Muitas escolas, na ânsia de justificarem o seu fazer, acabam enviando propostas de caráter institucional. Neste momento, a família tem liberdade de escolha do que é possível fazer, quando as crianças conseguem concentrar. Não podemos esquecer que as crianças também estão no meio de uma crise sanitária, do medo, da angústia e da insegurança. Precisamos relaxar e entender que os objetivos previstos na base nacional comum curricular são de dois em dois anos. Não precisamos correr e forçar as crianças a passarem o dia na frente do computador ou reproduzindo tarefas _ pondera.
Doutora em Educação e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Simone Albuquerque acredita que o reinício das aulas da educação infantil precisa ser pensado de forma intersetorial. E compreende a importância da reabertura das escolas, mesmo que seja para parte dos estudantes.
_ É um direito das crianças, mas também das famílias. Temos visto os dados. Há famílias chefiadas por mulheres. Elas precisam trabalhar e, muitas vezes, não têm com quem compartilhar o cuidado dos filhos _ pondera.
Simone recomenda uma flexibilização dos turnos de trabalho para as famílias, em razão do cuidado com as crianças. Porque, ressalta, mesmo quando voltarem à sala de aula não deverão permanecer em turno integral logo no recomeço.
Com pensamento próximo ao de Simone, a professora e pesquisadora Viviane também reforça que o retorno da educação infantil precisa ser pensado conjuntamente pelas áreas da educação, saúde, assistência social e direitos humanos. Para ela, os riscos de contaminação pela covid-19 aumentam por ainda não haver um protocolo a ser seguido para preservar vidas sem correr risco, uma formação adequada aos professores e a garantia financeira.
_ É preciso olhar o número de óbitos no Brasil e como o vírus se comportou no país. Neste comportamento há uma clareza de que as crianças são assintomáticas e propagadoras do vírus, colocando em risco outras crianças e os familiares ao voltarem para casa _ sustenta.
Viviane respeita a decisão do Estado, mas não aprova as crianças serem as primeiras no retorno gradual.
_ Penso que as últimos a voltarem deveriam ser as crianças. Estamos falando de uma faixa etária de quatro meses a cinco anos e 11 meses. É uma realidade que a gente não vislumbra quando enxerga uma proposta política de Estado. Essa faixa etária é complexa e precisa de um olhar cuidadoso, em que somente professores que estão em sala de aula e pesquisadores da infância podem falar _ opina.
Reforço profissional
Além da ajuda dos avós, algo que ainda não é recomendado pelos órgãos de saúde, os pais têm buscado auxílio profissional na hora de escolherem com quem vão deixar os filhos pequenos. Na Serve Bem Agência de Domésticas e Babás, a contratação de babás passou de uma, em março, para 17 em maio. Conforme a fundadora, Cristina Ruas Moisés, somente nos dois primeiros dias de junho, oito famílias já tinham requisitado as funções de babás profissionais.
_ Há uma fila de espera para contratação. Os pais voltaram ao trabalho e não têm com quem deixar as crianças. Muitos pedem, inclusive, babás com experiência em didática de aula para auxiliar nos trabalhos escolares _ conta Cristina.
Cardiologista intervencionista, Alessandra Teira de Oliveira, 45 anos, de Porto Alegre, precisou contar ainda mais com a ajuda do ex-marido para cuidar da filha Giovanna de Oliveira Scholz, três anos e meio, com a chegada da pandemia. A menina estava no turno integral na escola antes do distanciamento social. A partir de março, Giovanna começou a ficar as manhãs e inícios da tarde com o pai, até Alessandra retornar do trabalho.
Nesta semana, a médica contratou a babá Elodir Santos de Oliveira para ficar com a filha e já pensa em manter a menina apenas em um dos turnos na escola, quando as aulas recomeçarem em 1º de julho. Ao mesmo tempo que teme o contágio, Alessandra considera importante a menina interagir com a escola e os colegas.
_ A minha tendência é mantê-la mais em casa, mandá-la em apenas alguns horários, mesmo a escola nos dando segurança apresentando o protocolo que será seguido para combater a covid-19 _ reforça.
Reforço nos cuidados com a higiene
Para a infectologista pediatra Fernanda Hammes Varela, se fosse possível, o melhor cenário seria manter as crianças em casa durante o inverno no Rio Grande do Sul. Mas entende a educação infantil também como política social, já que a maioria das mães e dos pais trabalha fora e não têm como mantê-las. Por isso, reforça que as famílias devem ensinar os pequenos a praticarem a higiene das mãos e a usarem máscaras, indicadas somente para crianças acima de dois anos. Fernanda ainda sugere o uso do protetor facial (face shield) infantil, que pode ajudar a manter as mãos afastadas do rosto. Para as escolas, a médica aponta as principais mudanças no protocolo de atendimento:
_ Não adianta vivermos com medo de uma coisa que vamos ter de enfrentar. E o ideal é que a gente enfrente da melhor forma possível. Nas escolas é importante a limpeza dos ambientes e das maçanetas, no mínimo, uma vez a cada turno. O cuidado precisa ser redobrado com as crianças que usam chupetas e mamadeiras, não deixando essas peças tão disponíveis porque elas trocam entre os colegas. Importante também intensificar a questão da higiene de mãos, principalmente, com álcool gel.
Já o infectologia Ronaldo Hallall, integrante do comitê para covid-19 da Sociedade Riograndense de Infectologia, é contra a reabertura das instituições escolares no próximo mês. Para ele, a pandemia não foi vencida no Estado.
_ Tivemos aumento de 1,5 mil para quase 10 mil casos em quatro semanas. Temos um cenário epidemiológico não favorável ao retorno às atividades. Não é uma questão apenas do retorno às aulas, independentemente da faixa etária, é um debate que tem que ser aprofundado em relação à pertinência de reduzir as medidas de isolamento neste momento epidemiológico _ alerta.
O infectologista ainda sustenta, assim como as especialistas na área da educação, ser difícil estabelecer orientações para crianças muito pequenas, que manifestam maior dificuldade para utilizar a máscara e de seguir as observações de distanciamento, sendo um desafio ainda maior para as escolas.
Enquanto segue o impasse sobre o retorno às atividades presenciais, Viviane Ache Cancian salienta que o tempo de vivência das crianças em família será valioso, inclusive, no retorno à sala de aula. Segundo ela, os pequenos aprendem o mundo dos adultos por meio das leituras do cotidiano. Muitas experiências em família, garante a especialista, enriquecerão essa aprendizagem quando retornarem ao espaço coletivo da educação infantil.