Faltavam 33 minutos para o sinal de entrada na sala de aula da Escola Municipal Cívico-Militar de Ensino Fundamental São Pedro, no bairro Getúlio Vargas, em Bagé, na manhã da quinta-feira passada (12), quando dois alunos que já estavam nas dependências da instituição tentaram sair à rua com as mochilas nas costas. Ao descerem os degraus da porta de entrada, ouviram a orientação de um dos novos instrutores da escola para retornarem. Contrariados e em silêncio, deram meia-volta.
Pouco depois, uma adolescente ingressou no saguão com os cabelos soltos e foi questionada por outro instrutor sobre o motivo de não estar com as madeixas presas.
— Mas a aula não começou — tentou justificar.
— Quando você ingressa na escola, precisa seguir as regras — determinou o instrutor.
Outras três que conversavam no mesmo ambiente também receberam a indicação para deixarem o local e dirigirem-se ao salão Padre Muraro, onde seriam formadas as filas de entrada. Uma pré-adolescente que saboreava um pirulito precisou comer o doce antes de se juntar aos demais dentro da instituição. E um garoto recebeu o aviso de uma professora para tirar o boné e guardá-lo na mochila.
— Você sabe que não pode mais usar (o boné) aqui dentro — ela argumentou, quase cochichando.
Desde o início da semana, os 320 estudantes do sexto ao nono ano do Ensino Fundamental da São Pedro passaram a ter o acompanhamento de seis instrutores. Eles são militares da reserva — integrantes da Brigada Militar (BM), do Corpo de Bombeiro e das Forças Armadas — com formação pedagógica ou experiência comprovada em programas com crianças e adolescentes. Esta instituição e a Escola Municipal de Ensino Fundamental Dr. João Severiano da Fonseca, no bairro Castro Alves, em Bagé, que tem 200 alunos nas séries finais, servirão como modelo de escola cívico-militar da rede municipal. O projeto-piloto tem lei e decreto sancionados pelo prefeito Divaldo Lara (PTB) desde agosto deste ano. Ambas acrescentaram mais do que o novo termo ao nome próprio das instituições. Ganharam novos funcionários e novas regras — mesmo que estas ainda estejam em adaptação.
Hinos na segunda-feira
Na quinta-feira (12), dez minutos antes do início das atividades em sala de aula, previstas para 8h, as turmas da São Pedro começaram a formar filas de frente para o palco do salão onde são realizadas reuniões e há aulas de teatro. Enquanto o diretor, Gustavo Rossi, dizia ao microfone para os estudantes se organizarem, o técnico em enfermagem, professor de Educação Física e militar da reserva Adonai Gomes, 37 anos, caminhava com as mãos para trás entre as duas turmas do nono ano, ensinando-os a manterem o corpo rígido, as mãos espalmadas nas laterais das pernas e a cabeça erguida:
— Os pés têm que ficar juntos. Depois, poderão descansar — disse a um adolescente.
Outra aluna, olhando de canto, esboçou uma careta como se não concordasse com a medida.
— O meu período no Exército me criou uma identidade com a causa, com a disciplina e a educação que se cobra dentro da instituição. Tenho duas filhas, de três e de 14, que me motivam a estar aqui. Quero que a educação que dou para as minhas filhas se propague — expôs Gomes.
Quase ao lado, o primeiro-tenente da reserva da Brigada Militar Rogério Alves, 50 anos, que atuou durante 29 anos na BM e fez parte do Programa Educacional de Resistência às Drogas (Proerd), alinhava as duas turmas do sexto e do sétimo anos. Os alunos da frente ouviam atentamente, mas os que estavam mais atrás seguiam conversando, alheios às explicações.
— Estamos num processo de adaptação, com alguma resistência. Mas no momento que tu chamas duas vezes, eles se dão conta de que as coisas estão mudando. Não pretendemos formar soldados, mas bons cidadãos — sustentou Alves.
Por quase 15 minutos, as seis turmas dos anos finais do Ensino Fundamental permanecerem em pé no salão, em fila, aguardando a determinação para seguirem às salas. Os professores observavam de um dos cantos do ambiente, até os instrutores finalizarem a ordem unida (que, nas Forças Armadas, é a formação habitual de marcha, parada ou de reunião dos componentes de uma tropa, com distâncias e intervalos estabelecidos).
Nas segundas-feiras, antes das aulas, os estudantes participarão do que é chamado de formatura: cantarão perfilados os hinos rio-grandense e nacional e hastearão as bandeiras. A partir da próxima semana, os instrutores também se tornarão responsáveis por controlarem a chamada ainda na fila. Os pais dos alunos que se atrasarem ou não forem à aula serão acionados pelo instrutor por telefone, no mesmo dia.
Outras exigências já em fase de implantação estão relacionadas à apresentação. Meninos terão que manter o cabelo curto e não poderão mais usar boné, capuz e chapéu. Meninas deverão andar sempre com os cabelos presos e usar apenas sombras e batons com cores claras (não é especificado quais são as cores). A touca foi liberada no inverno, pois Bagé está localizada numa das áreas mais frias do Estado. As direções destas duas escolas municipais ainda estão decidindo se exigirão uma única cor para a peça de roupa.
Uniforme em período de testes
Enquanto o uniforme completo não é entregue aos alunos da escola São Pedro pela Secretaria Municipal de Educação de Bagé (Smed) — uma licitação será aberta para a compra da roupa e do calçado —, a determinação é de que os estudantes usem calça jeans e a camiseta verde de manga curta doada pelo órgão para o desfile de 7 de setembro e onde já consta o novo nome da instituição. O estudante que não tiver calças jeans poderá manter o abrigo fornecido pela escola para as aulas de Educação Física até os responsáveis por ele comprarem a peça exigida. Quem não comparecer com o uniforme improvisado poderá entrar na instituição, mas será cobrado na entrada, mesmo a Secretaria salientando que ainda é um período de testes.
O regimento interno, criado pela Smed em conjunto com a comunidade escolar, ainda está sendo discutido no Conselho Municipal de Educação. A previsão é de que o texto seja aprovado, com ou sem alterações, em até dois meses, para ser colocado em prática oficialmente a partir de 2020.
Até o final deste ano letivo, os novos funcionários das instituições trabalharão na monitoria e no aperfeiçoamento das primeiras regras. Quando as aulas reiniciarem, em 2020, os militares da reserva atuarão dentro e fora da sala de aula. Cada um será responsável por duas turmas, com atividades semanais.
— O diferencial da nossa proposta com relação a do governo federal é de que nossos instrutores entrarão na sala de aula em dois períodos semanais. Quando o regimento for aprovado, eles abordarão temas como combate à violência, disciplina, combate às drogas, patriotismo, civismo e valores — explica Rossi, diretor da São Pedro.
Fora de sala de aula, os instrutores serão uma espécie de padrinho dos alunos, controlando o comportamento e o rendimento escolar por meio de uma ficha disciplinar individual. O discente terá um quadro de pontuação diária, cuja nota pode aumentar ou ser reduzida. Ao ingressar na escola, ele iniciará com sete pontos, podendo chegar a 10, se tiver elogio coletivo ou individual em conselho de classe, participação em eventos aprovados pelo diretor cívico-militar ou indicação do conselho de classe trimestral como modelo de disciplina.
Com a implantação da proposta, a meta em 2020 é ampliar em uma hora as aulas diárias, das 7h30min até 12h30min. Hoje, os alunos ficam na escola das 8h às 12h. O mesmo valerá para o período da tarde. As duas unidades ofertarão aulas de inglês, além do espanhol já existente.
Bagé adiantou-se no processo
Em janeiro deste ano, quando o presidente Jair Bolsonaro (PSL) anunciou a intenção de ampliar o número de escolas cívico-militares em todo o país (o modelo de gestão compartilhada entre professores — parte pedagógica — e militares — parte administrativa — é usado em escolas estaduais de Goiás e de Brasília), o prefeito de Bagé, Divaldo Lara, instigou a equipe a criar um modelo próprio. Os trabalhos tiveram início no final de fevereiro.
— Formamos uma comissão com os diretores, com representantes do Conselho Municipal de Educação, da Procuradoria Jurídica para que pudéssemos fazer a adequação da forma mais rápida e adequada para sermos a primeira no Brasil com toda a documentação aprovada. O que a gente conhece de escolas que já adotaram este modelo é Estado. Municipal somos a primeira — justifica a coordenadora pedagógica da Smed, Carmem Bueno.
Segundo Carmem, para que o projeto de Bagé fosse colocado em prática ainda neste ano, foram adequadas e aprovadas cinco leis: três orçamentárias — o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária (LOA) — e as leis que instituíram as escolas e autorizaram a contratação dos instrutores por meio de edital — 50 homens e mulheres se inscreveram e dez foram selecionados depois de entrevista e análise dos currículos.
— Apostamos que vai dar certo porque as questões de mediação de conflito, do combate à violência e às drogas, que já são feitos pelo Proerd, estão incluídas no projeto — justifica a coordenadora pedagógica.
Os diretores das duas escolas selecionadas para atuarem dentro do modelo na cidade visitaram uma instituição em Brasília para conhecer um sistema educacional semelhante. A administração municipal também apresentou ao Ministério da Educação (MEC) e ao vice-presidente da República, Hamilton Mourão, a intenção de integrar o Programa das Escolas Cívico-Militares e receber recursos federais.
Terra do general Emílio Garrastazu Médici, o terceiro presidente do período da ditadura militar brasileira, Bagé tem forte tradição militar por estar próxima da fronteira com o Uruguai. O pai do vice-presidente, Mourão, o general de divisão Antônio Hamilton Mourão, comandou a 3ª Brigada de Cavalaria Mecanizada, em Bagé, na década de 1970. Amazonense, ele ganhou o título de cidadão bageense, título também recebido há um mês pelo filho. Mourão nunca escondeu a proximidade com a cidade gaúcha da Campanha. Nascido em Porto Alegre, ele é filho da bageense Wanda Coronel Martins, cujo nome dá a identificação a uma das ruas de Bagé, e viúvo de Ana Elisabeth Rossell, também bageense com quem ele teve dois filhos em 40 anos de casamento. Em 2018, Mourão esteve na cidade durante a campanha eleitoral e recebeu das mãos dos ruralistas um rebenque (pequeno chicote) de presente.
No início desta semana, o subsecretário de Fomento às Escolas Cívico-Militares do MEC, coronel Aroldo Ribeiro Cursino, confirmou, em entrevista ao programa Gaúcha+, da Rádio Gaúcha, que Bagé será uma das cidades contempladas pelo programa do governo federal. A outra escola gaúcha deverá ser estadual e indicada pelo governador Eduardo Leite.
Inspiração em projeto de lei do Rio Grande do Sul
O modelo proposto pelo governo federal inspirou-se no projeto de lei que tramita na Assembleia Legislativa gaúcha, proposto pelo deputado estadual gaúcho Tenente-Coronel Zucco (PSL/RS). Ele, aliás, é um dos articuladores do programa federal e tem conversado com os municípios gaúchos para a implantação do sistema no Estado.
— O governo federal anunciou que cada Estado deverá ter duas escolas cívico-militares, mas já sei de lugares no Nordeste que não aceitam a proposta. Por isso, pretendo trabalhar para o Rio Grande do Sul ganhar mais duas vagas, além das que já estão previstas — comentou o deputado.
A escolha das cidades levará em conta os números de violência e os resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Em Bagé, de acordo com a coordenadoria pedagógica da Smed, os anos finais do Ensino Fundamental ficaram por quase uma década com a mesma média. Em 2017, passaram de 3,6 para 4.
O MEC pretender ofertar mais de 200 cívico-militares no Brasil até 2023. A adesão de Estados e municípios deverá ser voluntária. A União colocará à disposição dos Estados estrutura e militares da reserva, que atuarão em funções administrativas nas escolas. Para 2020, estão previstos gastos de R$ 54 milhões. Cada escola receberá R$ 1 milhão para adequações de infraestrutura, e a São Pedro está na lista, segundo a secretária de Educação de Bagé, Adriana Vieira Lara.
— Estamos um passo à frente das demais cidades do Rio Grande do Sul e não utilizamos um centavo do governo federal para iniciarmos o nosso próprio modelo. A verba que será destinada pelo MEC nos ajudará nas melhorias a serem realizadas na escola — destaca Adriana.
Entre pagamento de salários dos novos monitores, licitações para uniformes completos (da boina ao sapato), confecção de apostilas por disciplina e reformas nas duas escolas, Adriana calcula um investimento de R$ 1 milhão dos cofres do município.
O MEC também tem em mãos um projeto ainda mais ambicioso para a escola São Pedro, encaminhado pela prefeitura e orçado em R$ 9 milhões. O espaço contemplaria piscina térmica e pista atlética. A obra permitiria ampliar as vagas para 1 mil alunos — hoje, a instituição tem em torno de 700 estudantes. Enquanto o projeto maior segue apenas no papel, pequenas reformas começaram a ser feitas no prédio, como pinturas interna e externa. A fachada será pintada de verde, por exemplo.
Desde março, as duas escolas selecionadas para se tornarem cívico-militar vinham fazendo adaptações à espera da chegada dos instrutores.
— Começamos a fazer em filas o trânsito dentro da escola e também cobramos a não utilização do boné — conta o diretor da João Severiano, César Torres.
— A apresentação, o uso da camiseta de identificação e um controle mais rígido nas entradas e saídas da escola também começaram a fazer parte da rotina para que não houvesse um choque na chegada dos novos profissionais — complementa o diretor da São Pedro.