Apesar do pouco tempo desde o lançamento público do ChatGPT, professores de diferentes escolas gaúchas já têm ensaiado mudanças motivadas pelo uso da ferramenta e de outras tecnologias de inteligência artificial. Entre atividades em sala de aula e formas de avaliação, as instituições de ensino têm aberto as portas para metodologias que envolvem pesquisa e análise dos estudantes.
Na Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha, em Novo Hamburgo, Daiana Campani, que dá aulas de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, já realizou três trabalhos diferentes com seus alunos de Ensino Médio utilizando o ChatGPT. A docente participa do grupo de pesquisa Divulgação da Ciência e Estudos Linguísticos e Tecnodiscursivos, do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), e foi nele que, no início do ano, estudou textos gerados por IA, o que lhe interessou.
— Pensei: “Puxa, isso vai impactar em sala de aula. É um assunto interessante de trazer às aulas de Língua Portuguesa”, porque não podemos deixar de discutir isso com os alunos. Não dá para simplesmente dizer que o ChatGPT não pode ser utilizado e deixar por isso. Os estudantes precisam ver as potencialidades e os desafios — defende Daiana.
Tendo essa preocupação em mente, a educadora apresentou a ferramenta com um teste simples: pediu ao ChatGPT um texto sobre a própria Liberato. A resposta não podia ser mais instrutiva.
— O grande trote que os veteranos da Liberato esperam ansiosamente para fazer com os bixos é pedir que eles produzam carteirinhas para o acesso às piscinas do complexo da escola. Essas piscinas não existem, é uma lenda urbana, mas esse foi um dos itens de infraestrutura que o ChatGPT elencou. Aí, os alunos se deram conta de que, embora a ferramenta tenha potencialidades, pode ser fonte de desinformação e, por isso, precisa ser usada com cautela — salienta a professora.
Em outra aula, para falar sobre Modernismo no Brasil, Daiana pediu que a tecnologia gerasse textos conceitualizando o movimento cultural e as vanguardas europeias. Também demandou que o sistema citasse características de diferentes escolas artísticas e desafiou os alunos a adivinhar de quais a ferramenta estava falando. Solicitou, ainda, que um poema dadaísta fosse produzido pelo recurso. Na última semana, voltou a usar IA para ensinar sobre crônicas.
— Foi muito legal, porque eu trouxe um texto feito pelo ChatGPT e outro pelo Fabrício Carpinejar, e eles logo perceberam a diferença, justamente porque o Carpinejar consegue colocar questões cognitivas, tem nuances, subjetividade, coisa que a inteligência artificial não tem. Embora seja um texto eloquente e de acordo com a norma culta, eles gostaram mais do texto do Carpinejar — recorda a docente.
As tarefas propostas parecem ter surtido efeito. Aluno do 4º ano do Ensino Médio e do curso técnico em Eletrônica da Liberato, Igor Bernardo Daudt, 18 anos, teve seu primeiro contato com a ferramenta em aula. Ele sente que entendeu suas funcionalidades e limites.
— Posso usar o ChatGPT para achar conteúdos mais específicos de eletrônica, porque, no Google, elas ficam muito espalhadas, mas mais para confirmar certas informações. Não pego a resposta como verdade, porque nunca dá para confiar completamente — opina Igor, que considera esse um recurso útil, como o Google, mas que é apenas isso: mais uma ferramenta.
Estudante do 1º ano do Ensino Médio da escola, Jéssica Flores de Oliveira, 16 anos, relata que muita gente usa para “colar” na escola, mas que a tecnologia pode ser empregada para o estudo.
— É muito bom para tirar dúvidas sobre assuntos específicos. Filosofia, por exemplo, é uma matéria em que eu não sou muito boa, e consigo entender melhor alguns conceitos usando o ChatGPT — comenta a aluna, que garante que, depois, checa as informações em outras fontes.
Propostas de interação
Em Porto Alegre, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Novo, no bairro Rubem Berta, conta com um nome de peso no trabalho com IA: Tatiane Reis, que é professora da rede e é referência nessa área. Dois projetos que a educadora criou se chamam Guilda dos Curiosos e Guilda dos Desenvolvedores, no qual ela diz “seduzir a gurizada com joguinhos”.
— Como a gente trabalha com as metodologias ágeis aplicadas ao processo de aprendizagem, aproveitei o modelo organizacional do Spotify, que é um sucesso, e ele é organizado em guildas e chapters. As guildas são comunidades de aprendizagem, de inteligência coletiva, e os chapters, ou capítulos, são subgrupos organizados por interesse, que podem durar um tempo e, depois, se desmanchar de acordo com a etapa do projeto. Aí, juntamos todos para desenvolver um jogo — descreve Tatiane.
O game se chama Escola dos Orixás, tema que foi ideia dos alunos, que pertencem a uma comunidade na qual há muitos terreiros de umbanda. Durante a elaboração do jogo, uma série de ferramentas tecnológicas foi usada, entre elas o ChatGPT. Para tanto, a IA foi tema de estudo das crianças.
— Fizemos rodas de conversa sobre o que era inteligência, sobre o que era computador, sobre a história dos computadores, o que são linguagens de máquina, de programação. O ChatGPT facilitou as buscas e a organização do texto, e, principalmente, eles entenderam que o uso da IA é sobre as perguntas que se faz. Tanto que uma das profissões do futuro é de engenheiro de prompt, que é um perguntador profissional — resume a professora.
A docente diz que tem colegas com receio desse tipo de ferramenta, porque pode “emburrecer” as pessoas, mas que há muito tempo a tecnologia já serve como inteligência e memória estendida.
— Eu não lembro nem do telefone do meu marido. O nosso cérebro tem sérias limitações de memória, e a gente vive, hoje, em um tsunami de informações. Para conseguir lidar com tudo isso, a gente precisa da memória distribuída e das ferramentas tecnológicas como ferramenta estendida. Mas é uma inteligência humana estendida, porque o computador é um bicho burro — diz a educadora.
Na opinião de Tatiane, o risco dos vieses e preconceitos disseminados pela IA se deve aos vieses e preconceitos do ser humano. Por isso, acaba sendo um recurso útil para “jogar na cara” o que é a humanidade e debater, por exemplo, questões éticas e sustentabilidade.
Pensando na importância de se fazer boas perguntas, a professora não se preocupa tanto com os plágios facilitados pelo ChatGPT. No seu entendimento, se a questão do professor for boa, a produção do aluno pode deixar de ser a resposta para ela e passar a ser a indagação, que precisará ser bem formulada.
— Se um professor deu uma pergunta pronta e quer uma resposta que a IA pode fazer direto, numa pergunta só, essa tarefa foi mal elaborada. Ela não serve para a realidade de hoje. Agora, é claro que eu posso dar para o meu aluno uma tarefa que ele possa usar essa ferramenta para fazer, mas vai ter que fazer, talvez, uma meia dúzia de boas perguntas para conseguir chegar numa resposta do nível que eu espero — reitera a docente.
Na rede privada, o Colégio Israelita Brasileiro, no bairro Santa Cecília, foi convidado a participar de uma pesquisa acadêmica, já em andamento, que pretende comparar a aprendizagem de estudantes em duas situações de avaliação: a tradicional, em que o estudante não tem acesso a materiais de apoio, e o exame de internet aberta, no qual o aluno pode pesquisas na internet, fazendo uso, inclusive, do ChatGPT.
O estudo, organizado por pesquisadores vinculados ao Ministério da Educação de Israel e à Unesco, liderados pelos professores Sugata Mitra e Edith Kimchi, está sendo desenvolvido pelo terceiro ano em Israel. O Israelita é a única escola do mundo a servir como piloto na investigação, que abrange turmas dos Anos Finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.
— Esses pesquisadores se deram conta de que hoje, nesse mundo onde todos têm acesso ao conhecimento, quanto mais você faz provas em que os alunos precisam decorar coisas, menos sentido essas provas têm, e é gerado todo um estresse de decorar algo que, dias depois, não se lembra mais. E se você pudesse fazer uma avaliação em que, mesmo podendo usar ferramentas tecnológicas, o aluno não conseguisse copiar e colar para se sair bem? — indaga Rafael Korman, coordenador do Ensino Médio do Israelita.
A hipótese é que, mesmo com acesso a instrumentos como o ChatGPT, o estudante só terá um bom desempenho se tiver conhecimento prévio das aulas, até mesmo para fazer as perguntas certas para o sistema.
— O objetivo do estudo é ensinar a metodologia aos nossos professores e comparar o quanto os estudantes retêm a aprendizagem em cada tipo de avaliação. Não dá para negar essa avalanche de ferramentas que estão surgindo, então por que não nos beneficiarmos delas? — questiona.
Ainda não há um resultado formalizado do estudo, que segue em andamento. Mas os docentes participantes já perceberam que os alunos, que de início acharam que a avaliação com o novo método seria fácil, agora consideram o exame até mais trabalhoso, uma vez que envolve muito mais pesquisas, para confirmar que a resposta é válida e fazer uma curadoria das informações – habilidade cada vez mais demandada na vida adulta.
Nessa metodologia, são avaliados cinco critérios: a expressão de uma alfabetização informativa, que aponta a diversidade de fontes de informação que o estudante buscou; a expressão para aprendizagem independente e compreensão do conteúdo relevante no campo do conhecimento; a expressão da voz interior, que abrange a criatividade e a análise crítica do aluno; a expressão verbal, que envolve a clareza e a organização do texto; e a expressão do pensamento como produto da resolução de problemas, que é oferecer uma resposta personalizada sobre passos para a resolução daquele problema.
Um dos exames aplicados usando essa forma de avaliação foi sobre a crise humanitária envolvendo os povos yanomami. Foi feita uma pergunta: como podemos ajudar o povo yanomami diante da crise humanitária identificada em janeiro de 2023? Munidos de textos, os estudantes são desafiados a citar as questões envolvendo o caso, escolher uma delas, pesquisar na internet a respeito e verificar a veracidade das informações no site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Depois, o aluno precisava escrever um e-mail para a associação de estudantes da sua escola apresentando o ponto que mais lhe preocupa e propondo uma ação que ele e seus colegas poderiam realizar para ajudar.