A falta de diversificação na indústria nacional gera um dado nada digno de celebração. Menos de 1% das 2,2 milhões de indústrias ativas no país têm algum tipo de atividade exportadora.
O dado é do levantamento do Ministério do Desenvolvimento (Mdic) pensado para mapear ações estratégicas. Ao escancarar cenário conhecido, pesquisadores, economistas e profissionais do comércio exterior chamam atenção: os benefícios associados à reversão da atual situação, que afasta receitas e afunila a indesejável dependência da balança comercial aos desempenhos do agronegócio e do petróleo, é fator prioritário para o desenvolvimento econômico.
Em universo restrito, explorado pelas 24.931 firmas exportadoras, dois Estados – São Paulo (11.325) e Rio Grande do Sul (2.930) – concentram mais da metade das indústrias brasileiras com produtos vendidos em outros mercados e têm alguns ensinamentos para virar esse jogo. O primeiro: esse contingente, ainda que pequeno, aponta o levantamento do Mdic, responde por cerca de 15% dos empregos formais do país, paga os melhores salários e abre as funções mais qualificadas do mercado.
"Países mais desenvolvidos tendem a ter a balança comercial diversificada"
Economista e pesquisador do Departamento de Economia e Estatística (DEE), Ricardo Leães demonstra outras vantagens. Países mais desenvolvidos, explica, tendem a ter a balança comercial diversificada. Os menos competitivos, invariavelmente, diz, concentram a internacionalização em commodity, o que expõe o desempenho às oscilações de precificação e câmbio e atua contra o potencial multiplicador para a economia doméstica.
— Não há grande predomínio entre um produto. É algo difícil de se alterar, e um dos exemplos é a China, que, na década 1970, importava minério de ferro e commodities e, agora, exporta produtos manufaturados, após intenso processo de industrialização. Quando se avalia a pauta de exportações, hoje, há muitos produtos que representam 2% ou 5% das exportações e não há grande concentração — analisa.
Ao contrário da exceção chinesa, no Brasil, isso não acontece. No Estado, por exemplo, acrescenta, Leães, a média dos últimos 20 anos indica que, quando são extraídos os produtos do agronegócio e de alguns ramos agregados (caso de máquinas e equipamentos e a alimentícia), sobra cerca de 30% da pauta de internacionalização industrial.
Com base nesse fator, Aderbal Lima, diretor do Centro das Indústrias do Estado (Ciergs) e coordenador do Conselho de Comércio da Fiergs, comenta que também está em curso, no RS, um mapeamento dos setores com potencial internacional.
Há 40 anos, Lima fundou a Novus, em Canoas, empresa que atua com internet das coisas e está presente em cerca de 70 países. Com sua experiência, em um mercado que seria o ambiente dos sonhos (ou seja, a exportação de tecnologia que anula fatores de concorrência interna e externa), Lima vê potencial em muitos setores gaúchos ainda poucos explorados. Ele cita iniciativas conjuntas que envolvem os governos estadual e federal, além de entidades, como forma de impulsionar a temática.
Entre os moveleiros, atuação contínua
O Rio Grande do Sul ostenta, pelo menos, dois modelos de sucesso com muito a ensinar sobre internacionalização e diversificação. Independentemente das conjunturas econômicas, dentro ou fora do país, as indústrias moveleira e calçadista do Estado têm presença garantida em dezenas de países ao redor do mundo.
Exportar faz parte do DNA destes segmentos que há mais de 20 anos iniciaram programas de fomento que, hoje, representam quase uma exigência para atuar no mercado externo. É o que explica a professora da Escola de Negócios da PUCRS, Ana Schneider. Ela também atua na assessoria da Movergs, a associação das indústrias de móveis do RS, e identifica que esse é um dos pilares estratégicos para os fabricantes desse ramo.
— Internacionalização não é escolha, é um fio condutor que nunca foi deixado de lado, independentemente do momento econômico. Remete ao ano de 1997, começou como iniciativa do governo do Estado e acompanhou a mudança dos ventos para se tornar uma política de fomento federal – resume Ana.
Atualmente, das 2.409 empresas ativas no ramo, 143 possuem atividade comercial em outros países. Significa que 5% do setor (mais do que a média das indústrias nacionais) têm vendas externas que, no ano passado, resultaram em US$ 254,5 milhões em receitas.
É algo impossível de ser obtido, avalia Ana, sem esforço permanente que, hoje, também é responsável por duas feiras respeitadas no mundo – Fimma e Movelsul – e de ações paralelas que contemplam outras etapas da cadeia, como fornecedores e designers.
Exigências que geram impactos positivos
Com US$ 900 milhões em exportações neste ano, até setembro, a indústria calçadista gaúcha oscila, ao longo da trajetória, bons e maus momentos. Mas isso não impede que se mantenha além do mercado nacional. Presidente da Abicalçados, Haroldo Ferreira dá a receita: o setor precisa equilibrar, de 40% a 60%, da produção entre vendas externas e internas.
Aos 33 anos, Cássio Romani, diretor da Boaonda em Sapiranga, diz não imaginar a atuação da empresa, fundada pela família em 1995 para a produção de matrizes, sem o mercado internacional. Em 2008, um projeto para produzir o calçado acabado teve início e, já no primeiro ano, os embarques se tornaram parte do faturamento da recém-criada marca, hoje presente em 25 países e bastante próxima de ingressar no desejado mercado norte-americano.
— Quando se exporta, há muito mais qualidade no produto e no trabalho nacional, porque a internacionalização traz um padrão que eleva a competitividade interna — comenta Romani.
Entre os fatores destacados está o nível de exigência para o comércio exterior. Um exemplo: além do emprego intensivo, característico das linhas de fabricação de sapatos, são geradas ocupações de maior valor agregado. Antes de exportar, é preciso dar conta de série de certificações que qualificam os processos, diz.
É o caso de regulamentações de boas práticas e de costumes, de relatórios sobre mão de obra não análoga à escravidão, segurança do trabalho, atividades de auditoria e recursos humanos – e tudo está precificado no produto final.
Estudo do Ministério do Desenvolvimento aponta que, em 2020, o salário médio ofertado por firmas que exportaram chega a superar em 25% ao que é oferecido por aquelas sem atividade internacional. E a remuneração, dependendo do setor, paga prêmios de 36% a 124% acima dos que são encontrados na comparação com indústrias que mantém somente a atividade doméstica.
Azeitando os negócios
Foi pelo Facebook, em 2019, que o contato feito por uma empresa dos EUA deu origem à primeira e, até hoje, única exportação de azeite de oliva do Estado e do país. Do outro lado da mensagem estava Rafael Marchetti, diretor da Prosperato, marca do RS fundada há 10 anos, naquele momento com produção de 3 mil litros – em 2023, a barreira de 50 mil litros anuais será superada.
Ao dar continuidade à conversa quatro anos atrás, Marchetti inaugurou as vendas para o disputado mercado norte-americano com 1 mil litros embarcados e outra encomenda na ponta do cais dependendo apenas de acertar a nova quantia. Trata-se de fluxo ainda restrito e fatia pequena quando comparada com a atual capacidade das empresas, mas com potencial, segundo ele, de fazer a diferença em futuro nem tão distante. Não só o da Prosperato, mas o do setor.
— É preciso o primeiro passo. Por acaso, foi um cliente do lugar mais procurado pelos exportadores que veio até nós por já estar interessado no azeite nacional. Isso gera muitas possibilidades — comenta.
A abertura de novos países não é prioridade no momento. A produção nacional é bastante recente e não contempla 2% da demanda interna por 100 milhões de litros. O RS fechou 2022 com 450 mil litros, ou 75% do que sai de todas as fábricas do país.
Atualmente, são mais de 80 rótulos de 17 indústrias que processam o cultivo de 300 produtores de 110 cidades do Estado. Há 20 anos, havia só um produtor. Seis anos atrás, eram 56 munícipios gaúchos com algum tipo de cultivo de oliveiras.
Números e prêmios de qualidade dos produtos do RS não param de crescer. A evolução do segmento já levou o presidente do Instituto Brasileiro de Olivicultura, Renato Fernandes, a declarar que o Estado tem a pretensão, no longo prazo, de atingir o patamar da Espanha, que detém 40% do mercado mundial, conforme o Conselho Oleícola Internacional.
O bom exemplo nos vinhos
Os últimos dados do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin) – descontinuado em 2019 – indicam alguns caminhos de fomento adotados nesse segmento, com potencial de gerar efeitos em outros setores. Em 2018, o Brasil atingiu a marca de 426,53 milhões de litros de vinhos e 35,97 milhões de litros de espumantes vendidos para outros países.
Naquele momento, em três anos, o crescimento das vendas externas foi de 177%. E 90,1% desse volume tinha origem no Rio Grande do Sul, dos quais 85 pontos percentuais eram da serra gaúcha.
A evolução não brotou espontaneamente nos cachos das vinícolas. Foi parte de um projeto setorial que remete ao ano de 2004, quando, a partir do lançamento do selo Wines of Brazil, teve início um intenso processo de prospecção de mercados. A estratégia de promoção comercial dos produtos contava com a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex Brasil) na realização de rodadas de negociações e feiras internacionais.
Sem o Ibravin, o selo continua sob a chancela do Conselho de Planejamento e Gestão da Aplicação de Recursos Financeiros para Desenvolvimento da Vitivinicultura (Consevitis-RS). Segundo o Comex Stat (site de estatísticas do governo federal), da criação do projeto até o ano passado, os valores dos embarques nacionais para o mundo cresceram quase 10 vezes – de US$ 1,37 milhão, em 2004, para US$ 13,69 milhões, em 2022, com Paraguai, Estados Unidos, Reino Unido, Japão, Bolívia e China entre os destaques.
Ação de cervejarias esbarra em entraves
A estratégia de desenvolver setores em mercados internacionais nunca é tarefa fácil. Em 2015, depois de ser reconhecida a melhor cervejaria do país, a Tupiniquim, que deixara o patamar de microprodução (ou seja, até 200 mil litros por mês), chegou ao mercado europeu. A partir da Dinamarca, colocou 15 mil litros de três rótulos à venda.
— Paramos de exportar em 2016, nunca mais conseguimos. Por vários motivos, nossa capacidade, nosso mercado, impostos. Hoje, até seria possível, mas o foco é interno — resume Christian Bonotto, um dos sócios da Tupiniquim.
O embalo inicial da desbravadora inspirou outras marcas gaúchas em um mercado robusto no mundo e no RS, onde hoje estão 285 cervejarias espalhadas por 126 cidades. É o que garante ao Estado a segunda colocação no ranking nacional, atrás de São Paulo, apontam dados do Ministério da Agricultura.
Com cerca de 16,1 bilhões de litros, o Brasil é o terceiro maior produtor mundial de cervejas, atrás de China e Estados Unidos. Há uma cervejaria para cada 123.376 habitantes, garantindo 2 milhões de vagas no mercado do trabalho, indica o Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv). A Fundação Getúlio Vargas (FGV) crava que cada emprego gerado em uma cervejaria cria 34 novos postos de trabalho nas demais etapas da cadeia produtiva.
Em 2019, três gaúchas uniram esforços para acessar novos mercados. A Salvador, de Caxias do Sul, a Seasons e a Devaneios do Velhaco, ambas de Porto Alegre, contaram com a consultoria do coordenador do curso de comércio exterior da PUCRS, Márcio Moreno, para iniciar as tentativas.
Dificuldades
A Seasons chegou a produzir a Holy Cow 2, um rótulo colaborativo com a americana Green Flash Brewing Co, mas o grupo de fabricantes do RS não conseguiu se manter por muito tempo no mercado externo. Os motivos são similares aos que pesaram na decisão da Tupiniquim.
Há quatro anos, as marcas foram procuradas por um comprador holandês. Chegaram a realizar alguns embarques bimestrais, que demandam transporte refrigerado, entre outras especificidades. No entanto, há pelo menos 12 meses não realizam vendas externas.
— Nesses casos, iniciativas governamentais como as desenvolvidas pela Apex Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) e alguns ministérios acabam não sendo conhecidas pelas indústrias — destaca Moreno, ao lembrar que a tarefa de vender para todo o Brasil pode ser tão difícil quanto a de colocar os produtos na América Latina.