O Rio Grande do Sul é o Estado da região sul do país com maior percentual de lares que enfrentam a fome. No Estado, 14,1% dos domicílios registram insegurança alimentar grave. Esse quadro é caracterizado por sentir fome e não comer por falta de dinheiro para comprar alimentos, fazer apenas uma refeição ao dia ou ficar o dia inteiro sem comer. Os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (Vigisan), divulgado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) nesta quarta-feira (14).
O Estado lidera nesse quesito com certa folga em relação aos vizinhos. Paraná tem 8,6% dos lares em situação de insegurança alimentar grave. Já Santa Catarina apresenta 4,6% nesse indicador.
O relatório destaca que os diferentes cenários entre Estados apontados na pesquisa ocorrem diante de uma série de fatores, como dinâmicas populacionais e estruturas socioeconômicas. "As diferenças entre os Estados estão ligadas tanto aos processos históricos de suas dinâmicas populacionais, estruturas socioeconômicas e processos políticos, quanto à aderência das decisões político-administrativas e das agendas de organizações sociais às necessidades de suas populações locais".
Abrindo mais o leque, levando em conta a insegurança alimentar moderada, o levantamento mostra que 25,4% dos lares gaúchos enfrentam algum tipo de falta de alimento. E também aponta que 64% das famílias que se encaixam nesta situação têm renda de até meio salário mínimo por pessoa.
Integrante da Rede Penssan e presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (Consea-RS), Juliano de Sá faz um alerta em relação à presença de crianças em lares com insegurança alimentar moderada ou grave. No Estado, apenas quatro em cada 10 domicílios com crianças de até 10 anos têm segurança alimentar.
Sá destaca que esse cenário pode desencadear problemas que vão além da vulnerabilidade social, pois também afeta questões biológicas:
— Serão crianças que estarão mais sensíveis a doenças. Isso também vai desencadear, no médio prazo, uma série de questões que as nutricionistas abordam sobre o desenvolvimento biológico dessas crianças. Elas terão problemas desde o processo de função, de produção de células, de equação hormonal. Isso pode gerar problemas de crescimento físico, mas sobretudo na questão do desenvolvimento como um todo.
O economista e professor da Escola de Negócios da PUCRS Ely José de Mattos afirma que o avanço da pobreza e da pobreza extrema no Estado pode ajudar a explicar a liderança do RS dentro da insegurança alimentar grave na região. Problemas de desenvolvimento mais acentuados ante os Estados vizinhos são alguns dos fatores que ajudam a entender esse movimento, segundo o especialista. Como exemplo, cita o Índice de Desenvolvimento Estadual — Rio Grande do Sul (iRS), que mostra esse retrato nos últimos anos:
— O Rio Grande do Sul passou a enfrentar, nos últimos 20 anos pelo menos, um cenário onde o desenvolvimento passou a ser mais dificultado. Se a gente olhar só para a educação, por exemplo, não estamos mais nem no primeiro pelotão.
No Rio Grande do Sul, 52,4% dos domicílios vivem situação de segurança alimentar. Ou seja, os integrantes do grupo familiar têm acesso regular e permanente a alimentos em quantidade suficiente e sem o comprometimento do acesso a outras necessidades básicas.
Transferência de renda
O relatório da Rede Penssan destaca que, mesmo com o programa Auxílio Brasil com alta cobertura em praticamente todos os Estados, as famílias com rendimentos de até meio salário mínimo por pessoa não apresentaram melhora significativa no acesso à alimentação adequada. O Rio Grande do Sul não apresentou diferença significativa na prevalência de insegurança alimentar moderada e grave entre domicílios com ou sem recebimento de recursos do Auxílio Brasil.
O presidente do Consea-RS destaca que o Auxílio Brasil teria mais efeito no combate à fome em um ambiente com outras políticas públicas.
— Eu acredito que teria mais resultados se estivesse conectado com outras políticas, como por exemplo, valorização do salário mínimo, aumento de emprego e renda, subsídios para baixar o preço dos alimentos, formação de estoques públicos, compras governamentais de alimentos da produção local e outros — explica Juliano de Sá.
A pesquisa destaca que o impacto do benefício é diluído em um cenário onde as famílias precisam pagar outras necessidades em um contexto de endividamento impulsionado pela pandemia de coronavírus.
“Mesmo as famílias que recebem o Auxílio Brasil, por estarem endividadas, não conseguem utilizá-lo somente para a compra de alimentos. O recurso precisa ser utilizado para pagar outras necessidades básicas, como aluguel, transporte, luz e água”, afirma, em nota, Ana Maria Segall, pesquisadora da Rede Penssan e da Fiocruz.
O professor Ely José de Mattos, da Escola de Negócios da PUCRS, também afirma que um dos caminhos para fortalecer o combate à fome passa por um sistema mais robusto:
— Renda é um pilar fundamental, claro, mas, como a gente não consegue fazer uma redistribuição massiva de renda sem que isso gere outros problemas, inflacionários inclusive, a gente precisa ter uma rede de suporte, assistencial. Um sistema alimentar, que envolve merenda escolar, fortalecimento do programa de aquisição de alimentos.
Categorias da pesquisa
Segurança alimentar
- A família/domicílio tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais.
Insegurança alimentar leve
- Preocupação ou incerteza em relação ao acesso aos alimentos no futuro; qualidade inadequada dos alimentos resultante de estratégias que visam não comprometer a quantidade de alimentos.
Insegurança alimentar moderada
- Redução quantitativa de alimentos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante de falta de alimentos.
Insegurança alimentar grave
- Fome (sentir fome e não comer por falta de dinheiro para comprar alimentos; fazer apenas uma refeição ao dia, ou ficar o dia inteiro sem comer).
Fonte: Rede Penssan