A relação entre a crise sanitária, as medidas de combate ao vírus e seus reflexos na saúde econômica do país tem sido debatida conforme a pandemia se estende – e seu fim ainda parece distante. Professor da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), o economista Cristiano Aguiar de Oliveira é uma das vozes a lamentar decisões como o fechamento de atividades diversas na fase inicial da atual crise. Estudioso de novas tecnologias, de Análise Econômica do Direito e da chamada Economia do Crime, que relaciona os índices econômicos à segurança pública, ele reconhece que a covid-19 espalhou dúvidas e desafiou decisões políticas. Avalia que a vacinação traz “perspectivas boas” para 2021. Contudo, alerta, a tarefa de recompor as perdas não será fácil. Segundo ele, depois da imunização em massa, o Brasil e também o Rio Grande do Sul ainda dependerão do avanço da agenda de reformas. Leia os principais trechos da conversa a seguir.
A economia foi atingida em cheio pelo coronavírus no ano passado. Qual é o cenário de 2021 para a atividade no Brasil e, especificamente, no Rio Grande do Sul?
Temos algumas perspectivas boas com o início da vacinação. Mas ainda estamos cercados por incertezas geradas pelo vírus. Entre elas, o surgimento de novas cepas ou eventuais impactos na eficácia das vacinas. É a pandemia que vai nortear a economia neste ano. Então, permanecemos em um cenário de incertezas. Em um período de crise sanitária como o atual, é assim que as coisas funcionam. O vírus é novo. A cada dia, temos novidades, notícias diferentes. Todas as outras possibilidades de mudança na economia exigem alterações de médio e longo prazos. Por exemplo, se reformas forem aprovadas, incluindo a administrativa e a tributária, teremos uma série de ganhos no país. Mas esses ganhos não seriam para este ano. Seriam para o médio e o longo prazos. Já experimentamos algumas políticas na pandemia. Mas microempresas e alguns setores como turismo e entretenimento passam por dificuldades. Então, é preciso gerenciar tudo isso.
Como o senhor avalia a condução da crise sanitária e econômica no Estado e no país?
Podemos começar pelo princípio. No início, sabíamos praticamente nada a respeito do vírus e do seu comportamento. Hoje, sabemos algumas coisas. Houve adoção de medidas quando ainda não existiam surtos. Esse descasamento entre algumas medidas e o vírus mostra nosso desconhecimento, nossa dificuldade de lidar com a pandemia como ela se apresentou inicialmente, de controlar a propagação da doença. É algo muito difícil. Tenho dito: espero que essa seja uma grande lição de humildade, para que a gente aprenda que, infelizmente, existem coisas que não sabemos fazer. Víamos muitos políticos dizendo que era preciso fazer isso e aquilo, porque era o que a ciência indicava. Mas percebemos que o vírus seguiu sua trajetória, independentemente de fecharmos isso ou aquilo ou de medidas mais radicais que acabavam sendo uma forma de dar satisfação para o público em geral e a imprensa. O vírus, por si só, já geraria uma série de problemas econômicos, as pessoas já deixariam de viajar, de frequentar locais fechados. Essas medidas potencializaram os problemas.
Na sua opinião, em quais decisões houve acertos? E em quais houve erros?
É muito difícil fazer algum julgamento, porque ainda estamos no calor da situação. Talvez precisaremos de algum tempo para ter uma cabeça mais fria e estudar o tema sem fincar pé em um lado da questão. O que acho que faltou para decisões políticas, e ainda falta, é uma análise de custo-benefício. Sou um defensor da análise de custo-benefício. Acho que, mesmo em situações de incerteza, você consegue fazer essa avaliação com algumas informações. Vou dar um exemplo: no Estado, estamos com um sistema de bandeiras desde maio, e até hoje o governo não apresentou uma avaliação desse modelo. Por exemplo, em determinados locais, com bandeira vermelha ou preta, qual foi o impacto nas hospitalizações? Ou seja, não se fez uma análise mínima das medidas. No país, estamos passando por um problema na questão das vacinas. Há uma ideologização, uma politização das vacinas, sem a busca pelo melhor desenho para imunizar a maior parte da população o mais rapidamente possível. Temos essa dificuldade de avaliação de políticas estabelecidas.
No Estado, estamos com um sistema de bandeiras desde maio, e até hoje o governo não apresentou uma avaliação desse modelo. Por exemplo, em determinados locais, com bandeira vermelha ou preta, qual foi o impacto nas hospitalizações? Ou seja, não se fez uma análise mínima das medidas. Temos essa dificuldade de avaliação de políticas estabelecidas.
Quais são os principais desafios para voltarmos a uma “normalidade” no país?
Há uma série de situações que a gente ainda desconhece. Temos de criar desenhos para que as pessoas realmente se vacinem. Nesse sentido, o governo federal, o Ministério da Saúde, responsável pelo processo, está indo mal. O mercado privado já deveria ter sido aberto para que outras vacinas entrassem. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já reduziu exigências, mas é preciso mais. É necessário atingir o maior número possível de pessoas com vacinas diferentes. Há um mercado que hoje não está sendo atendido. Isso gera desequilíbrio. Agora, não é tão evidente, mas vai começar a sobrar vacina para determinados grupos etários e, ao mesmo tempo, vai haver escassez para pessoas que estarão esperando. Então, é preciso abrir o mercado de vacinas, liberar a importação pelo setor privado, de qualquer opção que esteja aprovada. É liberar para que as pessoas com disposição para pagar efetivamente paguem pela vacina e tenham a imunização o mais rápido possível. O pagamento da vacina é um incentivo que o importador e o produtor têm para ofertá-la. No momento em que você diz “tenho no meu país 100 mil pessoas dispostas a pagar US$ 100”, a conversa já muda na hora de barganhar a vacina com os fabricantes de fora do país. Hoje, temos a ideia de que vamos fazer compras grandes e convencer os fornecedores de insumos, mas não é assim que o mercado funciona. O mercado funciona com incentivos. Isso quem pode fazer é o setor privado.
Como seria o processo de vacinação com a participação do setor privado?
O processo seria assim como ocorre com outras vacinas. No caso da gripe, por exemplo, você pode se vacinar em um posto, em uma data específica, ou um laboratório privado fornece a vacina na hora em que você quiser.
Críticos à participação da rede privada veem ameaças de distorções no andamento do cronograma de imunização. o senhor não vê esse risco?
Não. Isso não faz sentido. Em um momento de escassez, a questão não é abrir o mercado para que pessoas furem a fila. É abrir o mercado para criar uma nova fila. Você cria várias filas.
Na sua avaliação, existe algum país que seja um exemplo no combate à crise sanitária e, ao mesmo tempo, econômica, tomando medidas que minimizaram o impacto do coronavírus na economia?
Tudo isso o que está acontecendo, todo esse cenário de pandemia, é estranho. No ano passado, os países pareceram perdidos. Adotaram comportamento de manada. Uns começaram a tomar determinadas medidas, e os outros seguiram esse caminho. É claro que há medidas restritivas com alguma literatura, sobre aglomeração de pessoas em ambientes fechados, por exemplo. Essas coisas, obviamente, são consenso. Não falo de medidas assim básicas. Fora disso, é muito difícil apontar exemplos de países neste momento. Hoje, em termos de vacinação, Israel está à frente, mas é preciso abrir parênteses de maneira rápida. O que está sendo feito em Israel é uma espécie de experimento, o país resolveu fazer um estudo direto na população, porque confia e imagina que vai funcionar bem. Felizmente, está dando ótimo resultado. Israel é uma referência hoje, mas tem essa pequena observação que, me parece, deve ser feita.
Houve uma espécie de cancelamento do debate (ao longo da pandemia). Isso não é bom. Você estabelece um pensamento único de um ente abstrato que é a ciência. É como se eu, economista, dissesse que a ciência econômica é isso ou aquilo. Não é assim que funciona. Há prós e contras para cada situação. O bom debate se faz com a troca de ideias.
O senhor atua como pesquisador na área de economia do crime (análise sobre relações entre variáveis econômicas e indicadores de segurança pública). Quais reflexos da pandemia podem ser percebidos nesse campo de pesquisa?
São dois aspectos. O primeiro é o efeito visto no ano passado. Houve redução da criminalidade em praticamente todos os lugares do Brasil. É curioso isso. Governantes atribuíram para si os méritos dessa redução. Na verdade, a redução ocorreu com a queda no número de pessoas circulando nas ruas. Então, é muito difícil avaliar qualquer política implementada no ano passado por causa da pandemia. Foi um choque muito grande. As pessoas circularam menos. O segundo aspecto é o econômico ligado ao crime. Aí há um chutômetro, uma intuição de quem pesquisa o assunto. Aparentemente, a situação está sob controle por causa do auxílio emergencial. Há uma literatura bem vasta ligando questões de pobreza e miséria à criminalidade. Se houvesse realmente o choque da perda massiva de empregos sem qualquer tipo de auxílio, a situação seria bastante complicada. Talvez esse seja o choque que vamos começar a perceber agora, com o fim do auxílio emergencial. É algo apenas especulativo, se vamos ter alguma relação entre economia, crime e pandemia. Com o desemprego crescente, pode começar a aparecer algum reflexo na criminalidade. Principalmente, em crimes contra o patrimônio.
Em 2020, o auxílio emergencial contemplou cerca de 68 milhões de pessoas no Brasil. Com a piora da pandemia em parte do país, cresce a pressão pela volta do benefício. Por outro lado, o governo federal enfrenta restrições fiscais. Diante desse cenário, é interessante retomar o auxílio? Há viabilidade?
Se pensarmos no auxílio como algo temporário, vamos ter um problema. Estamos em um ambiente de incertezas. Entre as questões incertas, está o tempo de duração da pandemia. Você até pode pensar em fazer o auxílio por mais dois, três ou seis meses. Mas, na verdade, você não sabe isso, porque não sabe até onde vai a pandemia. A extensão do benefício ficou complicada. Agora não temos mais o Orçamento de Guerra (medida que permitiu ao Planalto turbinar gastos para enfrentar a crise em 2020). Aí, o governo tem de colocar o custo do auxílio no Orçamento tradicional. A questão é que o dinheiro vai ter de sair de algum lugar. De onde vai sair? Não tenho a menor ideia. Imagino que nem as pessoas que trabalham no Ministério da Economia tenham alguma ideia, porque o Orçamento é muito rígido. Há muitas despesas obrigatórias. O governo não pode, por exemplo, deixar de pagar funcionários públicos ou deixar de cumprir o orçamento do Judiciário. Então, há pouca margem para manobra, mas a ideia é interessante, acredito que seria importante. Claro, hoje em dia é mais fácil falar, mas voltando a um ponto inicial: demos uma paulada grande na economia no início da pandemia, fechando diversos tipos de atividades. Houve impacto muito forte, quando a gente talvez devesse focar em atividades que infelizmente deveriam ser fechadas, como o setor de entretenimento ou turismo. Sabemos que o vírus se propaga em locais fechados ou com grande quantidade de pessoas. A gente poderia ter estendido o auxílio para pessoas como garçons, por um longo período, em vez de dar todo o auxílio para todo o mundo. No momento em que atividades foram fechadas, criou-se um custo muito alto para a sociedade. As pessoas perderam sua fonte de renda. De novo, é fácil falar hoje, mas, naquele momento (início da pandemia), talvez tenha faltado esse tino para dizer que não fazia sentido fechar determinadas atividades, porque geraria um problema a ser custeado, e as pessoas não podem ficar na miséria.
É possível dimensionar o tamanho do desafio para a retomada da economia?
É bom ficar claro que, antes da pandemia, não estávamos crescendo muito. A década passada (2011 a 2020) foi perdida em termos de crescimento. Foi muito pior do que os anos 1980, que ficaram conhecidos como a década perdida. O país está estagnado há muito tempo. Esperar retomada muito forte, no meu ponto de vista, seria irrealista. “Ah, vamos sair da pandemia para um período de crescimento acelerado”. Isso é praticamente impossível. Por que estamos estagnados? A lista é longa, mas enumeraria algumas coisas. Entre elas, o péssimo ambiente de negócios, que piorou na pandemia. Hoje, há uma incerteza a respeito dos negócios. Você não sabe se amanhã seu negócio será fechado com o aumento de internações. Em termos de segurança jurídica, saímos piores da pandemia.
Além da vacinação, quais são as outras medidas importantes para melhorar o ambiente de negócios no Brasil e no Rio Grande do Sul?
Há uma tentativa de fazer muita coisa. A reforma tributária é fundamental para simplificar o pagamento de impostos. Hoje, a legislação é extremamente complexa na área tributária. O Brasil é um dos piores países do mundo para o pagamento de tributos. No caso do Rio Grande do Sul, é preciso resolver o problema fiscal. O governo do Estado teve a “sorte” de conseguir recursos extras (transferências da União) durante a pandemia. O Rio Grande do Sul vai ter de fazer a lição de casa, cortar gastos efetivamente.
Ou seja, o caminho do Estado é seguir na agenda de reformas?
Exato. É o caminho, porque tem muita coisa a ser feita. Há muita despesa que deve ser cortada, muita empresa pública que deve ser vendida. Infelizmente, o gasto público está limitado à capacidade de geração de receitas. E quem gera receita é o setor privado, empresas e trabalhadores, que vêm sendo prejudicados.
Há mais algum ponto que o senhor gostaria de destacar sobre o cenário atual?
Uma coisa que me chateia muito é o que ocorreu ao longo da pandemia. Houve uma espécie de cancelamento do debate. Isso não é bom. Você estabelece um pensamento único de um ente abstrato que é a ciência. É como se eu, economista, dissesse que a ciência econômica é isso ou aquilo. Não é assim que tudo funciona. Quando vamos debater a reforma tributária, por exemplo, há várias ideias e vários caminhos, com custos e benefícios, se você vai tributar mais o consumo ou se vai tributar mais a renda, por exemplo. Há prós e contras para cada situação. O bom debate se faz com a troca de ideias. O que observamos durante a pandemia foi uma espécie de cancelamento do debate.
Qual é, então, o aprendizado deixado pela pandemia?
A palavra agora é vacina. Problemas no passado foram resolvidos com vacina. E que bom que temos pessoas com capacidade para desenvolver vacinas de muito boa qualidade em pouquíssimo tempo. Essa é a boa ciência. Desde o início, sempre falei que o caminho era esse. Ou você cria uma vacina ou, em tudo o que você fizer, não terá a mínima ideia do resultado.