Depois de passar pelo Ministério da Educação (MEC), eliminando bolsas de estudo e enxugando o orçamento de universidades federais, a tesoura do governo federal mira outro setor importante para a formação profissional no país: o Sistema S — conjunto de instituições privadas administradas por federações e confederações patronais voltadas a treinamento profissional, pesquisa e assistências técnica e social. Ao todo, são nove corporações, estabelecidas pela Constituição Federal, cada uma voltada a uma área de atuação, como indústria, comércio, agronegócio e pequenas empresas. São elas: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), Serviço Social da Indústria (Sesi), Serviço Social do Comércio (Sesc), Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop), Serviço Social do Transporte (Sest), Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat) e Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).
Ministro da Economia, Paulo Guedes já afirmou em mais de uma ocasião a intenção de rever as regras de financiamento para entidades como Senai e Senac, que atuam na capacitação de trabalhadores. Se o plano for adiante, o receio é que desapareçam 90 mil vagas gratuitas no Estado para preparar trabalhadores para indústrias, lojas e tarefas do campo. Este número foi levantado pela reportagem de GaúchaZH, após contato com as entidades na semana passada.
A maior parte do orçamento dessas organizações vem de contribuições fiscais compulsórias das empresas, que são devolvidas pelo governo aos Sistema S. As alíquotas pesam sobre a folha de pagamento (exceto no Senar, do meio rural, que, conforme a superintendência regional, é cobrado principalmente sobre as vendas) e variam conforme o setor de atuação das empresas, de 0,2% a 2,5% — uma conta de aproximadamente R$ 17 bilhões por ano. Por exemplo, as indústrias pagam alíquota de 1,5% para viabilizar as ações do Sesi, que forma mão de obra especializada, e mais 1% para o Sesi, que promove ações sociais. As entidades também captam recursos por meio de prestação de serviços, como treinamento pagos, consultorias e parcerias para pesquisas.
— No caso de haver cortes, a atividade mais impactada será a do Jovem Aprendiz, que tem cursos oferecidos gratuitamente pelo Senai na modalidade de Aprendizagem Industrial. Além disso, possivelmente, teriam de ser fechadas nossas escolas que têm esta como principal atividade — afirma Gilberto Petry, presidente da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs), que abarca o Sesi e o Senai.
O corte, conforme Guedes afirmou em um almoço no final de dezembro, na Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), antes da posse do novo governo, seria de 30% a 50% sobre o que é pago atualmente. Mais recentemente, em abril, durante palestra em Campos do Jordão (SP), o ministro disse que entidades usam a maior parte do dinheiro para "financiar campanha e comprar prédio" e apenas uma pequena fatia para investir na educação. Como regra, as entidades do Sistema S precisam aplicar a maior parte do orçamento em ações de capacitação e treinamento. O argumento do ministro é de que o corte seria uma redução nos custos para tornar as empresas brasileiras mais competitivas. Oficialmente, o Ministério da Economia não se manifestou sobre inciativas para reduzir o orçamento do Sistema S.
— O alívio para empresas (desonerando a folha de pagamento) seria insignificante e ainda traria um custo adicional de treinamento e capacitação, o que muitas não têm condições de fazer — aponta Luiz Carlos Bohn, presidente da Federação do Comércio de Bens e de Serviços do Estado (Fecomércio-RS) — a entidade responde pelo Sesc e o Senac, que promovem projetos de capacitação.
Possíveis reflexos do corte
Caso o corte aconteça, no comércio, poderia ser eliminado o Programa Senac de Gratuidade (PSG), que promove cursos gratuitos para a população mais pobre. No ano passado, foram 10 mil capacitações. No campo, está o maior potencial de fechamento de vagas: o Senar estima em até 60 mil o número de vagas sob risco.
— Dependemos totalmente das contribuições compulsórias, não temos outra fonte de renda para viabilizar as capacitações — afirma Eduardo Condorelli, superintendente do Senar-RS.
Apesar de projetarem o pior, líderes destas entidades têm cuidado ao avaliar o avanço do projeto de "passar a faca no Sistema S", nas palavras de Guedes. Por duas razões: uma é que as entidades têm se articulado para apresentar os resultados das suas ações ao governo federal, aceitando em bom tom medidas para aumentar sua transparência, como a submissão à Lei de Acesso à Informação — decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) neste mês.
A outra é que uma mudança nesta linha dependeria de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), entendem as entidades, uma vez que o Sistema S é previsto pela Constituição de 1988, o que demandaria votação em dois turnos no Congresso e no Senado, com necessidade de três quintos de aprovação.
— Me parece que o governo está buscando um entendimento melhor de como funciona o Sistema S, acho difícil que esta ideia avance — avalia Vergilio Perius, presidente do Sistema Ocergs-Sescoop/RS, que promove ações junto às cooperativas.
Cursos podem sofrer redução se orçamento diminuir
Entre os projetos que pode sofrer cortes com a redução de verbas para o Sistema S, está o Jovem Aprendiz, que Grégory Matos Roth, 18 anos, frequenta. O velho desejo de trabalhar em fábricas ficou mais próximo quando ele conseguiu uma vaga como Jovem Aprendiz no Centro de Formação Profissional Senai Ney Damasceno Ferreira, em Gravataí, para aprender Automação. Ele finaliza o Ensino Médio em uma escola do Sesi. Em outro turno, aprende a programar softwares e mexer com robôs.
— Vou sair daqui com um conhecimento que me permitirá buscar emprego em uma grande indústria — comemora ele, que planeja também ingressar em uma faculdade para aprofundar seu conhecimento.
Como jovem aprendiz, Grégory não tem despesas para aprender nem estudar. Ainda é remunerado com meio salário mínimo para garantir que não terá de abandonar os estudos para trabalhar precocemente. A condição é viabilizada pelas verbas captadas pelo Sistema Sesi/Senai, que recebe uma alíquota de 2,5% sobre o que as indústrias gastam na folha de pagamento e revertem para treinamento profissional. Apenas no Ney Damasceno _ conforme o Senai, projeto que poderá ser encerrado caso haja corte no orçamento _, são 700 alunos na mesma situação.
— Se não aprendesse aqui, não teria condições de pagar um curso privado de eletrônica industrial — reconhece Vitória da Silva Leal, 18 anos.
Contratada como Jovem Aprendiz pela GM, ela aperfeiçoa seu conhecimento aprendendo a mexer com resistores e fontes, para, até o final do ano, quem sabe, ser efetivada pela montadora. Seria um salto na condição social dela e da família: o pai, trabalhador de linha de produção de uma fábrica de pneus, e a mãe, diarista, aspiram ver a filha empregada como técnica em uma multinacional.
Esperança de futuro
Sesc Comunidade também sofreria com possíveis cortes. Só pela unidade do Centro da Capital, passam mais de 1,1 mil alunos todos os anos para aprender algum ofício ligado ao comércio. São jovens aprendizes que recebem aulas como administração, vendas e até operação de caixa de supermercados, lapidando a mão de obra que será necessária para movimentar a economia do varejo.
Oito turmas atendem pessoas portadoras de deficiência, em aulas que muitas vezes dependem de atenção exclusiva, inviável se os jovens tivessem que pagar do próprio bolso. Uma destas aprendizes é Maiara da Silva dos Santos, 21 anos, contratada como auxiliar no setor de Recursos Humanos do Agibank, na Capital. Com deficiência auditiva, já aprendeu a trabalhar como atendente em chat e agora aperfeiçoa o conhecimento nas tarefas de RH.
— O curso me abre condições para aprender novas tarefas, melhorando minhas chances no mercado — explica Maiara.
O Senac Comunidade — sob risco de ter atividades reduzidas se o orçamento do Sistema S for enxugado — também é a esperança de Ricardo Petry Miotto dos Santos, 20 anos, para a futura carreira. Ele está no seu segundo curso do programa Jovem Aprendiz, indicado pela empresa de certificação Safeweb, onde estagia. No primeiro, aprendeu as funções de administrativo, e agora trilha o caminho das vendas.
— Seria muito difícil encontrar a qualidade que recebo aqui em outra escola, mesmo se fosse privada — afirma.