Aos 79 anos, o economista Reinhold Stephanes tem uma visão privilegiada da Previdência Social no Brasil. Especializado em Administração Pública na Alemanha e em Desenvolvimento Econômico pela Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) da Organização das Nações Unidas (ONU), iniciou sua carreira nacional em 1974, assumindo a presidência do então Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que tratava das assistências social e médica, além das aposentadorias.
No final da década, passou ao comando do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), autarquia federal que herdou a gestão da assistência médica do INPS. A partir dessas experiências, o catarinense natural do município de Porto União entrou na mira de futuros governos para cuidar da aposentadoria dos brasileiros. Em 1992, no governo de Fernando Collor, foi ministro da Previdência Social. E entre 1995 e 1998, retornou à pasta a pedido do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Autor de livros sobre o tema, como Reforma da Previdência Sem Segredos (1998), o atual secretário de Administração e Previdência do Paraná vê com pessimismo a proposta de reforma encaminhada ao Congresso. Para ele, o país perdeu tempo demais e as novas regras teriam de ser ainda mais duras.
Quando o senhor atuou ainda no chamado INPS, se avistava uma crise como a apontada hoje?
Quando o presidente Ernesto Geisel me convidou, me foi dito que a situação era um caos. Isso entre 1975 e 1976. Na primeira CPI sobre o assunto no Congresso, da qual fui convidado a participar, um deputado me disse que aquela situação era como a Esfinge: ou eu a decifrava, ou ela me devorava. Era uma visão caótica, sim. Àquela altura, já se contava com mais de cem anos de Previdência Social no mundo, e havia princípios e fundamentos estabelecidos. A idade mínima era um desses fundamentos universais, e o Brasil não o adotava. E nem usava o conceito de contribuição, era tempo de serviço. Ou seja, se o trabalhador comprovava o tempo de serviço, pronto, estava resolvido.
Se já era um caos nos anos 1970, como explicar que a Previdência Social tenha chegado viva até agora?
É que havia mais pessoas jovens que contribuíam e pagavam a aposentadoria. Aquilo era uma grande base quando eu era jovem, por exemplo. Mas, hoje, o quadro está mudando, é o que chamamos de pirâmide invertida, com mais velhos do que trabalhadores jovens. Por isso algo precisa ser feito.
Eu pergunto: por que um professor, uma pessoa que vai adquirindo sabedoria, conhecimento, tem de ter cinco anos a menos na idade mínima do que um operário da construção civil? É o único país onde se diz que professor é especial e precisa trabalhar menos, sendo que no resto do mundo o professor é o sábio que precisa dar aula mais tempo.
O Brasil já passou por reformas da Previdência antes. Por que não evitaram a situação atual?
A primeira reforma, mesmo, foi em 1998, a Emenda Constitucional 20, que é minha. Mas já saiu pela metade, se perdeu no Congresso Nacional. Tanto que depois, praticamente a cada quatro anos, se teve uma espécie de pequena reforma na área. Depois, houve emendas em 2003 e em 2005. É esse histórico é que devemos observar. Foi apresentada uma reforma com todos os fundamentos em 1998, mas a criação de idade mínima foi perdida por um voto. E hoje, 20 anos depois, estamos discutindo o quê? A idade mínima.
A proposta encaminhada pelo governo ao Congresso pode ser aquela definitiva que ainda não foi feita?
Historicamente, quando se manda um projeto desses ao Congresso, há uma depreciação da proposta entre 20% e 30%. Isso ocorre desde a Emenda 20. Se acontecer, será necessária uma nova reforma da Previdência daqui quatro ou cinco anos. Basta fazer um cálculo. Para este ano, o déficit previsto pelo governo é de R$ 292 bilhões, R$ 300 bi se arredondarmos. Essa reforma prevê economizar R$ 1 trilhão em 10 anos. Significa poupar R$ 100 bilhões por ano enquanto o déficit é de R$ 300 bi. Então, se aprovarem na íntegra, o resultado é razoável. Mas eu não acredito nisso. E havendo cortes no projeto, veremos que o resultado será relativamente pequeno.
Quer dizer que nem na íntegra o projeto trata do problema?
Não, porque estamos com muito atraso nesse assunto. É o que escrevi no meu livro de 1998 (Reforma da Previdência sem Segredos). Disse eu na época: “O que não fizermos hoje, teremos de fazer no futuro com um custo muito maior”. Acontece que não estamos fazendo com esse custo maior, estamos ainda sendo brandos. Vamos aumentar cinco anos de contribuição para os militares, ótimo, só que já deveriam estar contribuindo por esse período há muito tempo. Chegamos a um ponto em que o déficit é muito alto.
Em que pontos a proposta teria evitado esse custo maior que seria necessário?
Por exemplo, o governo está propondo idade mínima de 65 anos para o homem e de 62 anos para mulher para entrar em vigor, com a regra de transição, daqui a 12 anos. Esse é um prazo muito longo, o mundo inteiro já adota a idade mínima de 65 anos há mais de 20 anos. E ainda temos as exceções para professores, para policiais, entre outras categorias. Eu já vi o major Olímpio (senador pelo PSL de São Paulo) defendendo a inclusão dos guardas municipais do Brasil inteiro com cinco anos a menos para se aposentar. Assim como ele, há outros defendendo a inclusão de um monte de coisa na proposta. Está longe daquilo que o mundo pratica há mais de 20 anos porque temos vícios culturais.
Que vícios seriam esses?
Eu pergunto: por que um professor, uma pessoa que vai adquirindo sabedoria, conhecimento, tem de ter cinco anos a menos na idade mínima do que um operário da construção civil? Ele é especial por que é professor? Se é, então que se pague melhor o profissional. É o único país onde se diz que professor é especial e precisa trabalhar menos, sendo que no resto do mundo o professor é o sábio que precisa dar aula mais tempo. E quanto aos policiais? Claro que você não coloca um policial com mais de 50 anos na rua, mas aí ele vai fazer outro tipo de trabalho. Por que um coronel de polícia, com 50 anos, tem de ir para casa? Com essa idade, hoje em dia, ele é um atleta. Claro, não para correr atrás de bandido, mas pode estar comandando um quartel aos 60 anos, com toda a tranquilidade, fazendo o planejamento estratégico.
O que mais o Brasil tem de regras originais em relação ao que é praticado no mundo?
O Brasil tem outra coisa muito interessante, que só temos aqui: você se aposenta e continua no emprego. Ninguém levanta isso, mas é algo que atinge profundamente as nossas empresas estatais. Por isso, de vez em quando, vemos instituições como Banco do Brasil e Caixa Federal implementando os planos de demissão voluntária. Trata-se de como tirar aquele pessoal que já foi aposentado, que ganha fundo do pensão, e que chega a uma idade na qual não tem mais condições de trabalhar. A Emater do Paraná, por exemplo, o agrônomo entra e quando chega aos 60 anos não quer mais ir ao campo. Para mandá-lo embora será preciso indenizá-lo. Em qualquer lugar do mundo isso é automático: se aposentou, sai do emprego.
Como explicar a necessidade de uma reforma profunda, de alto custo, para as pessoas mais pobres?
Vou dar um exemplo real. Eu estava reunido com três pessoas de carreira do Estado, ano passado, conversando sobre a então reforma em discussão. Os três em torno dos 50 anos de idade, todos ganhando salário pelo teto do STF e reclamando de que teriam de trabalhar cinco anos a mais se a reforma ocorresse. Perguntei para eles qual seria o mal de trabalharem mais, até os 56, 57 anos de idade? Afinal, iriam se aposentar pelo teto e ter essa renda para toda a vida. Então, como ficariam os 14 milhões de desempregados não não têm renda, não sabem se um dia terão? O problema da Previdência bate nessa gente, a mais pobre. Serão os primeiros a perderem se a Previdência acabar e não conseguir mais pagar ninguém.
Temos de imaginar alguém que trabalha dos 20 aos 60 anos e vai viver até os 85, é a expectativa futura de vida. haverá ainda 25 anos nos quais a sociedade terá de arcar com o custo. E nunca esquecendo de que haverá uma dinâmica populacional com mais idosos do que jovens. Alguém terá de pagar essa conta.
As alíquotas de contribuição da proposta pegam mais forte nos maiores salários. É um ponto positivo?
As alíquotas são pesadas. Acredito que se está invertendo o raciocínio. Em vez de dizer “vamos trabalhar quatro anos a mais, vamos reduzir essa transição e você vai continuar ganhando o mesmo quando se aposentar”, se está propondo “vamos diminuir o tempo de trabalho e você vai ter de contribuir mais”. Eu preferiria a primeira opção, “poxa, que bom, fico mais quatro ou cinco anos na ativa e, em vez de contribuir com 20%, vou contribuir com 14%”. Isso significaria um ganho adicional. Trabalhar mais não faz mal para ninguém. O que faz mal é você ganhar menos depois.
O brasileiro teria se acostumado mal com essa ausência de critério de idade por tanto tempo?
Sim, fomos mal acostumados. É interessante, porque no início da Previdência Social, em 1923, se criou uma idade mínima. Na década de 1950, chegou-se a aumentar essa idade, e era algo bem razoável para a época: 55 anos. Em 1960, em um ato de demagogia, a idade mínima desaparece do nosso calendário. E essa pauta somente vai ser retomada em 1998.
Mas, ainda assim, foram acrescentadas regras nos anos seguintes.
Sim, e acabaram inventando um negócio que é uma jabuticaba brasileira, o tal do fator previdenciário (índice que reduzir o valor da aposentadoria dos trabalhadores mais novos). Acontece que o fator apenas reduzia o valor do benefício, ele não estimulava o trabalhador a atuar por mais tempo no mercado de trabalho e contribuir. Com isso, o indivíduo saía o mais rápido possível da vida profissional, mesmo com a redução do valor da aposentadoria. Além disso, o fator não se aplicou ao setor público. E, mais tarde, inventaram outra jabuticaba, a fórmula 85/95 (soma de idade e tempo de contribuição que isenta o trabalhador do fator). Nada disso se mostrou ser a resposta para o problema da Previdência, tanto que estamos prestes de ver uma nova reforma.
Além da idade mínima, será preciso contribuir por 40 anos para que o benefício seja integral. Será possível alguém conseguir isso?
Mas temos de imaginar alguém que trabalha dos 20 aos 60 anos e vai viver até os 85 anos, é a expectativa futura de vida. Para essa pessoa, haverá ainda 25 anos nos quais a sociedade terá de arcar com o custo. E nunca esquecendo de que haverá uma dinâmica populacional com mais pessoas idosas do que jovens. Alguém terá de pagar essa conta. Então, o melhor é você trabalhar o máximo de tempo possível, inclusive, para não diminuir a sua renda lá na frente.
Existe mesmo déficit na Previdência, grande justificativa para a reforma atual? Críticos apontam que o governo deixa de arrecadar de grandes devedores, que isso taparia o rombo.
Esse discurso vem há quase 20 anos, não mudou nada. Se fala que a dívida das empresas com a Previdência é de R$ 500 bilhões. Bom, existe um departamento dentro da Receita Federal para cobrar essas dívidas, altamente especializado, com toda a estrutura. Por que não cobra então? Porque, na verdade, 90% desse valor é praticamente impossível de ser recuperado, são empresas que faliram. Ah, aí dizem que os bancos devem muito para o governo. Não, nenhum banco deve. Ele pode estar discutindo judicialmente alguma dívida. Porque, do contrário, o Banco Central iria intervir e cobrar.
O governo criou a chamada Desvinculação da Receita da União (DRU) para valores da seguridade social e repassá-los para o orçamento. Não estaria aí o motivo do déficit?
A DRU surge porque o chamado princípio de seguridade era inexequível. O governo federal tentou contornar esse problema com a DRU. Está no conceito geral: o orçamento da seguridade social engloba assistência social, saúde e Previdência. E a cada ano, ao elaborar o orçamento, se estabelecem as prioridades. Eu pergunto, qual é a prioridade? É pagar a aposentadoria e a pensão que têm valor definido. Tira-se dinheiro de onde, então? Se reduz, cada vez mais, da saúde e da assistência. Foi na tentativa de remediar isso, que os constituintes fizeram de forma absolutamente irreal, que se criou a DRU. E nenhum governo abriu mão dela desde então, nem de esquerda, nem de direita.