Recorrer aos amigos foi o único caminho que Tatiane Maciel, 33 anos, e Marcelo da Rocha, 46, encontraram para sobreviver diante da crise. As doações são o que tem garantido a alimentação do casal e dos cinco filhos, hoje pertencentes à classe social que o Banco Mundial chama de extrema pobreza – quando a soma da renda familiar dividida pelo número de pessoas fica abaixo de US$ 1,90 por dia (R$ 140 mensais em 2017).
No ano passado, 383,7 mil gaúchos (3,4% da população) estavam nessa situação, 65,7 mil a mais do que no ano anterior, conforme dados da Síntese dos Indicadores Sociais, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na semana passada.
Tornou-se corriqueiro para Tatiane, quando a despensa não está vazia, fazer fogo na rua para cozinhar, já que gás é item de luxo para ela. Latas velhas servem de fogão e a chama que aquece os alimentos é mantida por lenhas catadas no mato nos fundos da casa.
Materiais de construção e a mão de obra que ergueram o imóvel de dois quartos em um terreno irregular no bairro Jardim Carvalho, em Porto Alegre, foram fruto de caridade. A faxineira desempregada não se constrange ao mostrar os buracos no telhado, mas o sorriso se retrai quando mostra o quarto dos filhos, mobiliado com camas e colchões encontrados no lixo:
– Eles queriam um quarto mais bonito, mas é o que conseguimos.
É quando os filhos são atingidos que a angústia cresce. Tatiane não consegue emprego e o dinheiro que Rocha ganha com o táxi alugado não paga, muitas vezes, nem a diária de R$ 90 do veículo. Quando sobram R$ 50 é muito, diz, mas a regra é voltar para casa com R$ 20.
Os insucessos dos Rocha começaram em 2016, quando, por desavenças, precisaram deixar a casa em que moravam e tudo o que tinham. O casal e os cinco filhos passaram a viver no táxi, na rua ou em uma casa de sete metros quadrados até surgir a ideia de ocupar a área na Zona Norte.
Eles queriam um quarto mais bonito, mas é o que conseguimos.
Assim como a família Rocha, outros milhares ingressaram na extrema pobreza em 2017. Os motivos para que o índice de gaúchos nessas condições passasse de 2,8% para 3,4% em um ano podem ser interpretados como parte da herança deixada pela recessão.
– Em períodos de crise, as primeiras demissões são de salários menores. Esse é o grupo que fica em situação mais delicada. A produção nas indústrias, por exemplo, vai morrendo pelas beiradas, com o fechamento de linhas – observa o economista Ely José de Mattos, professor da Escola de Negócios da PUCRS.
Para Ely, o avanço na pobreza extrema também evidencia o alto nível de desigualdade social, que dificulta a ascensão de camadas mais desfavorecidas. Conforme o IBGE, no ano passado, o rendimento dos 10% mais ricos de Porto Alegre foi, em média, 17,3 vezes superior ao do grupo formado pelos 40% mais pobres.
Pesquisador do IBGE, Leonardo Athias salienta que, em 2017, mesmo com alta do PIB, houve redução do números de beneficiários do Bolsa Família. O cientista político destaca, ainda, a importância da estabilidade de programas públicos, pois podem ajudar pessoas em situação de pobreza a se reerguerem.
– Se essa pessoa não está se alimentando e nem se vestindo, não vai ter condições de pagar transporte público para procurar emprego – explica Athias.
Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o economista Felipe Garcia acrescenta que, no Estado, entraves burocráticos também freiam a abertura de empresas e, consequentemente, a criação de postos de trabalho, prejudicando parcelas mais pobres.
– No Rio Grande do Sul, o ambiente de negócios é mais complexo do que em outras regiões. Processos mais rápidos para abertura de empresas são fundamentais para o crescimento – avalia Garcia.
A elevação do percentual de pobreza extrema no Estado é inferior à registrada em nível nacional, que passou de 6,6% para 7,4%, mas, mesmo assim, os gaúchos tiveram o pior desempenho da Região Sul. Para Ely, esse é mais um dos indícios de perda de fôlego da economia gaúcha em relação aos vizinhos, já demonstrada no Índice de Desenvolvimento Estadual (iRS), parceria de ZH e PUCRS. Parte do movimento guarda relação com a crise fiscal gaúcha, diz o professor.
Entre 2016 e 2017, o Rio Grande do Sul manteve o sexto melhor índice do país. Santa Catarina (1,7%) e Maranhão (19,8%) aparecem nas extremidades do ranking. Mudança na metodologia impede a comparação com dados anteriores a 2016.
Sinais de melhoria no futuro
No curto prazo, especialistas avaliam que tanto o Rio Grande do Sul quanto o Brasil terão alívio no mercado de trabalho, o que poderá beneficiar parcelas mais pobres da população até o final do ano.
A projeção está ancorada na leitura de que datas como Natal costumam abrir espaço para a contratação de temporários. Para 2019, caso a economia confirme perspectivas e apresente desempenho mais vigoroso, a geração de empregos será estimulada de maneira gradual, apontam analistas.
– No próximo ano, expectativas de empresários tendem a ser renovadas. Deve haver retomada no mercado de trabalho, mas ainda não de maneira tão consistente – pondera o professor Ely José de Mattos, da PUCRS. – O movimento de reação é lento – completa.
O professor da UFPel Felipe Garcia ressalta que o nível de crescimento econômico dependerá das condições da política. Segundo ele, para melhorar o ambiente de negócios, o país precisa equilibrar suas contas com a realização de reformas, como a da Previdência.
– A reação mais consistente depois da recessão depende do ambiente político. Reformas não podem ser postergadas – defende o professor da UFPel.