
Não há registro, na história recente do país, de um dia como a quinta-feira, 24 de maio de 2018. Assombrados com a iminente falta de comida, água e gasolina, os brasileiros correram desbaratados aos supermercados e postos de combustíveis. A escassez causada pela greve que paralisou o transporte de cargas semeou pânico na população e, diante de um governo desnorteado, deu aos caminhoneiros poder suficiente para parar o Brasil. Sem avanço nas negociações entre a categoria e o Planalto, as perspectivas para os próximos dias são pessimistas.
– A economia é um carrossel. É justamente o combustível desse carrossel que está faltando. Então, as pessoas não têm como ir trabalhar, as empresas ficam paradas e começa a faltar tudo. A situação é dramática – avalia o economista Júlio César Almeida, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e diretor-executivo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi).
A economia é um carrossel. É justamente o combustível desse carrossel que está faltando. Então, as pessoas não têm como ir trabalhar, as empresas ficam paradas e começa a faltar tudo. A situação é dramática.
No final da tarde, o cenário era de caos anunciado. Em São Paulo, a gasolina estava prestes a acabar. No Rio, a falta de água nas torneiras se tornou iminente. Em Porto Alegre, faltou até carrinho para quem esvaziava as prateleiras dos supermercados estocando mantimentos e, na Ceasa, apenas 20% dos produtos estavam disponíveis, gerando espaços vazios entre as bancas. Em Brasília, só podiam pousar aviões que tinham querosene suficiente para decolar de volta. Nenhum desses problemas afetou algumas das maiores autoridades da República.
Por volta das 14h, o presidente Michel Temer deixou o Palácio do Planalto e embarcou para o município de Porto Real (RJ), onde participaria de solenidade de entrega de carros para conselhos tutelares. Mais cedo, o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), descumpriu a promessa de colocar em votação o projeto de lei que reduz PIS e Cofins sobre combustíveis.
Ao ser informado da viagem de Eunício, o presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), José da Fonseca Lopes, vaticinou:
– A coisa não vai ficar boa.
Assustado com a repercussão negativa, Eunício voltou a Brasília. Pouco adiantou. Àquela altura, Fonseca Lopes já havia abandonado reunião com os ministros Carlos Marun (Secretaria de Governo) e Eliseu Padilha (Casa Civil). Aos gritos, o sindicalista reclamou que o Planalto não era confiável e não avançava nas propostas. Para tentar reverter os bloqueios, o governo obteve 15 liminares na Justiça, autorizando inclusive o uso das Forças Armadas na desobstrução das rodovias.
O desacerto nos gabinetes palacianos e a falta de medidas práticas para atender as principais reivindicações da categoria – redução de 30% no preço do diesel e a interrupção dos reajustes automáticos – continuaram a gerar consequências.
A Federação dos Hospitais, Clínicas e Laboratórios de São Paulo alertou para os riscos de falta de oxigênio, materiais, medicamentos e insumos, como suprimentos para diálise. A Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul teria revelado temor de rebeliões nos presídios em razão da escassez de comida e gás. Escolas e universidades suspenderam aulas, prefeituras anunciaram interrupção de serviços, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) cogita suspender a rodada do Campeonato Brasileiro no final de semana e, nas granjas do interior de Minas Gerais, a fome causada pela ausência de ração provocou episódio de canibalismo entre os frangos. Nada disso abalou a intenção de resistir dos caminhoneiros. Pelo contrário. Conscientes da capacidade de esvaziar o transporte de cargas no 1,7 milhão de quilômetros de rodovias país afora, provocavam o governo.
– Vamos parar o Brasil. Vamos ver até onde o Temer aguenta – dizia Fábio Souza dos Santos, um dos líderes dos bloqueios na RS-239, em Araricá, no Vale do Sinos.
Aos protestos dos caminhoneiros, somaramse motoboys, motoristas de aplicativos, taxistas e donos de carros particulares. Muitos se reuniram em frente à Refinaria Alberto Pasqualini, em Canoas, impedindo a chegada e a saída dos 400 caminhões-tanque que todos os dias abastecem no local. Quem não quis paralisar as atividades manifestava solidariedade buzinando e trafegando lentamente. Foi o que fizeram cerca de 40 motoristas de vans escolares que circularam pela Avenida Ipiranga, em Porto Alegre.
– Há 20 anos levo e busco crianças no colégio e posso dizer que esse é o pior momento. Já não está valendo mais a pena – desabafou Renato Lemes, que atende os bairros Menino Deus e Cidade Baixa.
O mau humor das ruas contaminou o mercado. As ações da Petrobras abriram o dia em queda, obrigando o presidente da estatal, Pedro Parente, a dar explicações. Em teleconferência com investidores e analistas, justificou a redução temporária de 10% no preço do diesel, anunciado na véspera, como inevitável diante do desabastecimento. Seus esforços foram em vão. No fechamento do pregão, os papéis mais negociados da petrolífera valiam 15% a menos.
O prejuízo de R$ 47 bilhões no valor da estatal no volátil universo das bolsas de valores contrastava com a ganância de alguns empresários. No Recife, onde a gasolina era vendida em média a R$ 4,24 o litro na semana passada, o Procon multou em R$ 500 mil e interditou por 72 horas um posto que estava oferecendo o combustível a R$ 8,99. No Distrito Federal, postos de Águas Claras e Planaltina foram além, cobrando R$ 9,99 pelo litro. No fim da tarde, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) anunciou medidas para tentar garantir o abastecimento e coibir preços abusivos. Entre as iniciativas, as distribuidoras foram liberadas para entregar combustível de outra bandeira e também foram dispensadas de manter estoque mínimo.
Para quem se viu diante de uma bomba vazia, a solução foi improvisar. Na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, turistas alagoanos que empurraram o carro até um posto já desprovido de estoque apelaram para álcool etílico hidratado. Sem titubear, despejaram oito garrafas do produto no tanque, comemorando ao ouvir o ronco do motor. Como o veículo era alugado, foi entregue no Aeroporto Tom Jobim, de onde o grupo pretendia partir de volta a Maceió.