Empresas e pessoas brasileiras acusadas de corrupção estão na mira do poderoso Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Quem revela é o advogado norte-americano Eric Snyder, que representa alguns desses suspeitos. Ele vem a Porto Alegre para uma conferência sobre o tema, intitulada O Brasil sob os Holofotes, na Faculdade de Direito da PUCRS, no dia 5 de abril. Também fará reuniões fechadas sobre compliance – o cumprimento de todas as leis e regulamentos aplicáveis ao negócio – com advogados e empresários. O curioso é que Snyder, antes de ser advogado, atuava como promotor justamente em casos de "colarinho branco", assim como de lavagem de dinheiro do terrorismo. Nesta entrevista por e-mail, ele fala disso e explica por que trocou de posição no tabuleiro das grandes causas do direito internacional.
Antes de se tornar advogado, o senhor atuou como promotor público por 16 anos, na acusação. Além de casos de corrupção, o senhor trabalhou em crimes de sangue, como homicídio e latrocínio? Qual era sua rotina?
No início da minha carreira, entre 1993 e 1999, atuei como promotor de Justiça na cidade de Nova York, na investigação de crimes cometidos naquele Estado, incluindo homicídio, lesão corporal e porte ilegal de armas. Na época, a cidade de Nova York passava por uma epidemia de uso de crack e muita violência, portanto era um ambiente fértil para a persecução penal. Um caso marcante, de que me lembro bem, foi de um réu que contratou matadores de aluguel para assassinar um dos promotores responsáveis pelo caso, bem como uma das testemunhas da promotoria. A despeito disso, seguimos adiante com o caso e apresentamos uma denúncia. O réu foi condenado a 75 anos de prisão. Depois disso, me mudei para Washington D.C. e passei a atuar como promotor federal no Departamento de Justiça norte-americano. Atuei em casos complexos de lavagem de dinheiro e corrupção na América Latina, dedicando quatro anos de minha carreira a investigar as atividades das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Particularmente na Colômbia, a investigação contava com o depoimento de ex-membros das Farc, que estavam sendo reinseridos na sociedade. Uma ex-integrante admitiu, durante as investigações, ter sido enviada para espionar os investigadores e colocar uma bomba nas dependências do local no qual conduzíamos as entrevistas. Ela acabou desistindo e confessou o plano, tornando-se uma testemunha importante para o caso das Farc. O fato de estar grávida e não querer colocar a vida do seu filho em risco pesou em sua decisão. Também atuei na investigação de indivíduos próximos ao mexicano Chapo Guzmán (líder do Cartel de Sinaloa) em conjunto com as autoridades locais. Infelizmente, o promotor mexicano com quem trabalhei nas investigações foi posteriormente executado pelo cartel. Outro caso em que atuei como promotor envolveu Diego Murillo Bejarano, o "Don Berna", um dos ex-líderes do grupo de ultradireita Autodefensas Unidas de Colombia (AUC). Após a sua extradição para os EUA, ele foi condenado a 31 anos de prisão por lavagem de dinheiro e tráfico internacional de drogas. Em 2002, fui realocado para a promotoria federal do Distrito Sul de Nova York. Este é o principal órgão responsável pela investigação dos casos mais sofisticados dos Estados Unidos. Durante esse período, participei de investigações e apresentei denúncias contra a Al Qaeda, Hezbollah e Talibã. Um episódio marcante foi a investigação, no Afeganistão, de um comandante do Talibã que arrecadava fundos para aquela organização por meio da venda de heroína. Devido ao altíssimo risco de ataques, tínhamos que vestir colete à prova de bala durante os deslocamentos pelo país.
Há realmente uma política por parte do departamento de Justiça dos Estados Unidos no sentido de investigar a origem das remessas de dinheiro para paraísos fiscais, bem como os titulares dessas contas - americanos ou não.
O senhor pode detalhar casos de terrorismo em que atuou como promotor?
O caso mais notório foi o chamado "The Newburgh 4". Nesse caso, atuamos em conjunto com o Federal Bureau of Investigation (FBI) na investigação de um grupo de extremistas que planejava explodir uma sinagoga e um centro comunitário judaico no Bronx, na cidade de Nova York, bem como um avião militar na base aérea de Newburgh, no Estado de Nova York. Este caso chamou muita atenção da mídia americana. O canal HBO, por exemplo, chegou a produzir um documentário sobre a ação do FBI e do Departamento de Justiça. Agentes infiltrados do FBI forneceram explosivos e armamento falso aos terroristas, que foram presos em flagrante sem conseguir executar o plano. Também atuei em conjunto com o promotor argentino Alberto Nisman (procurador federal argentino, conhecido por investigar o atentado na Associação Mutual Israelita Argentina, em Buenos Aires, que matou 85 pessoas, e o governo de Cristina Kirchner, assassinado, dentro de sua casa, em janeiro de 2015) na investigação das atividades de financiamento e propaganda do Hezbollah na América Latina. Tive a oportunidade de me reunir com o Nisman mais de uma vez para compartilhar informações sobre as investigações relacionadas aos atentados contra a Embaixada de Israel em Buenos Aires (em 1992) e contra a AMIA.
No caso das Farc, o senhor teria feito a maior denúncia já realizada nos EUA contra uma organização extremista.
Este caso ficou conhecido como o maior caso já ajuizado contra os líderes das Farc. Em um só processo, denunciamos 50 líderes da organização. Ingrid Betancourt, antiga candidata à presidência da Colômbia (mantida durante seis anos em cativeiro pelas Farc), e outros dois americanos também sequestrados pela organização foram nossas testemunhas. Este foi meu último julgamento em Washington D.C. atuando como promotor federal pelo Departamento de Justiça. Tivemos que realizar diferentes processos de extradição, foi um caso muito complexo do ponto de vista da logística no transporte de prisioneiros. Antes de deixar o governo, participei do julgamento dos cinco primeiros réus daquele processo. Na época, o procurador-geral dos EUA considerou esta operação como a maior denúncia desse tipo já feita na história dos EUA.
Onde o senhor estava e o que fazia no 11 de setembro de 2001?
Estava no Panamá investigando, pelo Departamento de Justiça, um esquema de lavagem de dinheiro para cartéis de droga. Quando soube dos ataques, foi algo muito impactante para mim. Na hora, fiquei muito preocupado com meu irmão mais novo, que é policial em Manhattan (região de Nova York onde ficava o World Trade Center, um dos alvos dos atentados). Felizmente, logo consegui saber que ele estava bem. Meu outro irmão e cunhado são médicos e ajudaram no socorro às vítimas. O efeito do 11 de Setembro foi muito forte, tão forte quanto os ataques a Pearl Harbor (base norte-americana no Havaí atacada pelos japoneses em 1941, durante a II Guerra Mundial). Naquele momento, tive a impressão de que estava atuando no lugar errado, conduzindo investigações de lavagem de dinheiro enquanto meu país estava sob ataque.
No caso das Farc e com terroristas muçulmanos, o senhor atuou contra lavagem de dinheiro? como eles agem, quais são as empresas de fachada, que paraísos fiscais usam?
A ideia sempre foi de "seguir o dinheiro" em casos de terrorismo. Algo sempre muito complicado. Nos casos de jihadistas, o dinheiro envolvido não era alto. A preparação para ataques terroristas contra alvos civis poderia ser realizada com US$ 200 mil. Tudo dependia de encontrar a fonte dos recursos utilizados no ataque. No caso das Farc, não havia grande sofisticação. Parte do dinheiro era enterrada em diferentes locais da selva colombiana. Isso era muito diferente dos cartéis, que tinham muito mais dinheiro e, consequentemente, era muito mais difícil esconder o dinheiro. Eles distribuíam recursos em contas bancárias abertas em paraísos fiscais na América Central. O Hezbollah possuía uma rede mais complexa, com muitos negócios no Paraguai. Logo após começar a representar clientes brasileiros perante o Departamento de Justiça norte-americano, notei que as autoridades americanas estavam focadas em indivíduos/empresas com contas mantidas em paraísos fiscais (como Suíça, Luxemburgo, Liechtenstein etc). Há realmente uma política por parte do Departamento de Justiça no sentido de investigar a origem das remessas de dinheiro para esses países, bem como os titulares dessas contas _ americanos ou não.
Por que o senhor, de acusador, tornou-se defensor de suspeitos de corrupção e lavagem?
É muito importante para o estado de direito que cidadãos tenham a melhor representação jurídica possível. Nos EUA, é comum que ex-promotores passem a atuar na área privada após um período trabalhando para o governo.
O senhor divide seu tempo entre os EUA e outros países. Tem residência no Brasil?
Após deixar o Departamento de Justiça em 2010, notei que havia muitos brasileiros sendo processados pelo Departamento de Justiça e percebi que havia espaço para representar clientes brasileiros. Assim, após passar alguns anos viajando entre o Brasil e Washington, decidi me mudar para São Paulo em 2017. Agora vivo em São Paulo e viajo a Washington eventualmente para reuniões com o Departamento de Justiça.
No seu currículo, constam atuações em treinamento de compliance para executivos de uma empresa brasileira de energia elétrica e outra de cartões de crédito. Pode detalhar esses casos? Essas empresas são processadas nos EUA?
Atuei no treinamento de compliance de diversas empresas brasileiras. Entretanto, tendo em vista a confidencialidade inerente ao meu trabalho, não posso fornecer maiores detalhes.
Como o senhor enxerga a Operação Lava-Jato?
Apenas para esclarecer, eu não represento nenhum cliente, seja pessoa física ou jurídica, perante as autoridades brasileiras. Só nos EUA. Entendo, por um lado, os esforços que promotores brasileiros têm dado ao combate à corrupção. Ao mesmo tempo, acredito que tudo deva ser feito dentro dos limites da lei e respeitando os direitos dos investigados. Há um número significativo de investigações instauradas pelo Departamento de Justiça por violações ao Foreign Corrupt Practices Act, a legislação americana que visa ao combate da corrupção no Exterior. Em grande parte, tais investigações tiveram como base conduta de indivíduos ou empresas brasileiras nos EUA. Além disso, é importante salientar que o Ministério Público Federal tem uma relação de cooperação com promotores do Departamento de Justiça dos EUA. O que tenho notado ao longo dos últimos anos é que o Brasil tem sido um dos focos principais do Departamento de Justiça. Atualmente, esse órgão conta com cerca de 20 promotores federais focados em casos envolvendo empresas e indivíduos brasileiros. Acredito que a tendência seja de aumentar ainda mais esse número para dar continuidade a investigações com esse enfoque.
Em outros países, é comum essa mistura de negócios entre poder público e privado, políticos, empresários, movida a suborno? Há como comparar o que foi descoberto no Brasil com algum outro país?
Os EUA têm um sistema regulatório complexo que vem se desenvolvendo ao longos dos anos. A realidade nos EUA parece ser um pouco distinta da do Brasil, pois não há praticamente um Estado empreendedor, como no Brasil, onde, pude perceber, grandes empresas possuem investimentos do governo. Além disso, há normas bem claras para a atividade de lobby, que, embora complexas, são precisas sobre o que é permitido e o que
não é.
Quais as principais diferenças dos esquemas de corrupção norte-americano e brasileiro? Dizem que nos EUA o criminoso teme mais a lei. Será que esse tempo, de respeitar a lei, já chegou para os brasileiros?
Venho notando um aumento exponencial na busca por treinamento de compliance e adoção de padrões de cumprimento de regras internacionais por empresas brasileiras. Este processo de internacionalização e o aumento de investigações pelas autoridades brasileiras é em grande parte responsável por essa mudança. Acredito que há uma mudança na postura de empresas e indivíduos e uma clara busca por adequação às normas legais. Nos EUA, autoridades do governo são respeitadas por empresas e indivíduos, fruto de uma tradição consolidada há muito tempo. Isso não se estabelece da noite para o dia. Não obstante, é importante ressaltar que a corrupção não desaparece. Na última década e mais recentemente, diversos casos e julgamentos de políticos por corrupção ocorreram nos EUA.
No Brasil, é comum chamar de "crimes de colarinho branco" delitos como fraude, truste, suborno, lavagem de dinheiro e operações no mercado futuro da bolsa. O senhor tem atuado na defesa de empresas envolvidas em casos assim? Qual a melhor maneira de tentar inocentar alguém envolvido nesse tipo de delito?
Isso depende dos fatos de cada caso. A minha atuação se dá perante o Departamento de Justiça. Há casos em que os promotores não possuem provas suficientes para obter uma condenação nos termos da lei americana, a qual estabelece como ônus da acusação a necessidade de provar um crime além de qualquer dúvida razoável. Em outros casos, em que os promotores possuem provas suficientes para condenação do réu, pode-se pensar em alguma forma de cooperação com as autoridades. Entretanto, isso é algo que deve ser analisado caso a caso e conforme a decisão do cliente.