"Uma despedida" foi o título da comovente coluna que o escritor catalão Enrique Vila-Matas, autor de livros memoráveis como Dublinesca e Bartleby e Companhia (Ed. Cosac Naify), escreveu no jornal espanhol El País em junho de 2012, quando Josep Pep Guardiola pediu demissão do cargo de técnico de seu time do coração. Vila-Matas é sócio do Camp Nou desde 1957, data de sua inauguração como estádio oficial do Fútbol Club Barcelona. Para o escritor, a façanha de Pep como técnico do Barça é destino, não tem volta.
- Aconteça o que acontecer, tudo leva a crer que Guardiola se envolveu pela vida toda, e até poderemos vê-lo treinar a seleção chilena ou a francesa, o Bayern ou o Chelsea, mas seu destino sempre estará ali, a sua espera - diz Vila-Matas.
Inconsolável, o escritor catalão encarnava a amargura dos jogadores e dos fãs com a decisão inesperada do bem-sucedido treinador, o melhor que o clube já teve.
- Estou vazio e necessito me reabastecer. Quero recuperar a paixão - disse Guardiola, em seu discurso de despedida.
E, característico de seu estilo de liderança tranquilo e generoso, mostrou-se agradecido aos jogadores "por tornarem realidade as partidas que imaginei. Isso não tem preço".
Guardiola partiu para Nova York para desfrutar um ano sabático com a mulher e três filhos e instalou-se na região mais chique de Manhattan, o Upper West Side. Em seu lugar, ficou seu ajudante e colega da época em que jogou nas categorias de base do Barça, Tito Vilanova. Mas logo a história sofreu uma guinada. O "noi de Santpedor" (em catalão, "menino de San Pedro", povoado de agricultores ao norte de Bages, na Catalunha central, onde nasceu Guardiola), diante de tantas ofertas de trabalho, aceitou dirigir o Bayern de Munique, a partir de julho de 2013, por três temporadas.
O motivo não foi o dinheiro, disse Guardiola, quando se tornou público que seu salário seria de US$ 22,7 milhões anuais, o mais alto do futebol mundial. Entre as razões de sua escolha, pesaram a ordem do clube alemão, o respeito pela hierarquia e até a menor pressão da liga em termos de exposição.
Dizem que o valor do contrato com os alemães é menor do que o Manchester City, o Chelsea e a liga italiana tinham oferecido.
- Guardiola é um dos treinadores mais bem-sucedidos do mundo - declarou Karl-Heinz Rummenigge, presidente do Bayern. - Temos certeza de que trará muito brilho ao time.
Várias vezes, Guardiola levou os seis melhores títulos possíveis: a Copa del Rey, o título da Liga, a Liga dos Campeões da Uefa, a Supercopa da Espanha, a Supercopa da Europa, e o Mundial de Clubes. Foi o único técnico da história a conquistar os seis títulos no mesmo ano. Ganhou 14 troféus de 19 e 11 finais das 12 que jogou. É um apaixonado pelo futebol.
- Descobri cedo essa vocação e tenho sorte de me pagarem para fazer o que mais amo - diz Guardiola.
Chegou a La Masía, a academia das categorias de base do Barça, em 1984. Tinha 13 anos. Jogou no juvenil durante seis temporadas, até que em 1991 Johan Cruyff, o craque holandês que treinou o Barça de 1988 a 1996, convocou-o a jogar no time principal.
Só que, além de jogador, Guardiola descobriu seu talento para desenvolver talentos. Em uma entrevista para o jornal Sport.es, o treinador argentino Marcelo Bielsa o definiu como o construtor do time que liderou o futebol nos últimos anos.
- Ele fez um esporte melhor, executado pelos jogadores que escolheu, que imaginou - afirmou Bielsa.
Em seu livro La Roja: el Triunfo de un Equipo (ed. Alienta), Juan Carlos Cubeiro, diretor da Eurotalent e professor das universidades San Pablo-CEU e Esade, e Leonor Gallardo, doutora em educação física e professora da Universidad de Castilla-La Mancha, destacam que a liderança de Guardiola se consolidou pelo fato de ele mesmo ter tido bons treinadores, entre os quais Cruyff e Louis van Gaal, o holandês que foi técnico do Bayern de 2009 a 2011 e dirigiu Guardiola em 2000. Gaal acredita que o grande valor dele como jogador era sua capacidade de estruturar o jogo, graças a suas habilidades de comunicação.
Um dos segredos do treinador é passar valores fora do futebol
Outro que o influenciou foi Juanma Lillo, com quem o ex-treinador nunca jogou, apesar de ambos estarem no México na mesma época, mas se tornou seu grande mentor técnico e conselheiro. Da mesma forma como Manuel Estiarte, considerado o melhor jogador de polo aquático de todos os tempos e responsável pelas relações exteriores do Barça. (Estiarte pediu demissão quando Guardiola saiu do clube.)
- O segredo de Guardiola foi transmitir valores à equipe, fazer com que os jogadores soubessem que há algo mais do que futebol - disse Estiarte.
O meio-campista Xavi Hernández comentou certa vez:
- Guardiola é muito inteligente, e esse é o segredo, como convence, como motiva.
"A multiculturalidade é um dos ingredientes essenciais da nova liderança", escrevem os autores de La Roja. "Guardiola jogou, depois de seus 17 anos de Barcelona, no Brescia e no Roma, da Itália, no Ah-Ahli, do Catar, e no Dorados de Sinaloa, do México. Foram cinco anos nos quais aprendeu muito. Para ser criativo, para ter uma mentalidade global, para 'sair da caixa', a multiculturalidade é imprescindível." O Barça defende abertamente a diversidade. A história do clube seria outra sem os húngaros Franz Platko e László Kubala, Cruyff, os brasileiros Romário e Ronaldinho e o argentino Lionel Messi.
Quatro anos à frente do Barcelona - de 2008 a 2012 -, repletos de triunfos, provaram, sem dúvida, que Guardiola é um homem ambicioso, ainda que simples e humilde. Seu ego está sob controle: não dá entrevistas e, quando lhe perguntam sobre as causas de seu sucesso, sempre fala dos jogadores. Esse é seu estilo de liderança. Generoso, inteligente, emocional, alegre, entusiasmado, discreto, reflexivo, obsessivo. Conhecido por passar horas estudando vídeos das partidas de seus rivais, ficava imaginando estratégias para ganhar. Também analisava os vídeos com sua equipe para detectar erros e jogadas a melhorar.
Quando Guardiola assumiu como técnico do Barça, era apenas um iniciante. Nunca tinha treinado um time da primeira divisão. Chegou ao clube em um momento de crise: o Barcelona estava desgastado após dois anos sem ganhar títulos e com disputas internas de poder. Sua liderança, valores profissionais e pessoais, seu compromisso e sua serenidade para punir os jogadores e seu carinho para estimulá-los foram tão inspiradores que conseguiu tirar o melhor de cada membro da equipe e logo atingiu o sucesso que poucos times no mundo alcançaram.
Além dos gramados
Os talentos de Pep
- Comunicar-se bem, transmitir valores, ter compromisso (mais que habilidades e conhecimentos) e desenvolver talentos
Estilo de liderança
- Generoso, inteligente, emocional, alegre, entusiasmado, discreto, reflexivo e obsessivo