A contratação para a colheita da safra de maçã nos Campos de Cima da Serra, no Rio Grande do Sul, começa meses antes de os frutos amadurecerem. No caso da mão de obra indígena vinda do Mato Grosso do Sul, que vem crescendo nos últimos anos e atingiu número recorde em 2020, representantes das empresas gaúchas mantêm contatos com as aldeias durante todo o ano para efetuar a seleção de trabalhadores.
Sempre em outubro, Nilson Bossardi, sócio-gerente da Frutini, de Vacaria, percorre quase uma dezena de aldeias para anunciar vagas. Após sete anos escolhendo trabalhadores no Mato Grosso do Sul, hoje ele é recebido com pompa. Em gratidão, indígenas oferecem refeições coletivas para recepcioná-lo.
Na Frutini, algumas turmas são enviadas ao Rio Grande do Sul ainda em novembro para o raleio dos pomares, quando se retira o excesso de frutos da planta. O auge da movimentação é a partir da metade de janeiro, quando ônibus partem rumo aos Campos de Cima da Serra. Antes do embarque, a Fundação do Trabalho do Mato Grosso do Sul (Funtrab-MS) ajuda a organizar as turmas e a separar a documentação dos safristas, que têm a carteira assinada.
Após dois dias de viagem, terenas chegam com 45 dias de contrato garantidos para a colheita da maçã gala. Alguns têm o vínculo estendido por mais 30 dias para trabalhar na variedade fuji. Em 2020, na Frutini, 534 dos 735 temporários são indígenas. Bossardi calcula que o transporte de cada grupo custa R$ 23 mil para a empresa. O investimento, segundo ele, compensa.
– É mais caro do que trazer gente de perto, mas indígenas se adaptaram muito fácil à maçã. A qualidade do trabalho fez com que eles fossem ficando – explica Bossardi.
Crítica
Na safra, funcionários da Funtrab vão à Vacaria para avaliar as condições de trabalho e hospedagem oferecidas pelas empresas. Eventuais irregularidades são encaminhadas ao Ministério Público do Trabalho (MPT). O MPT-RS ressalta que não há registro de problemas recentes.
– Por ora, não temos casos de ilicitudes na contratação de mão de obra indígena para a colheita. Talvez, devido ao trabalho preventivo realizado no Mato Grosso do Sul – avalia Gilson de Azevedo, vice-procurador chefe do MPT-RS.
No passado, pomares vacarienses foram alvo de denúncias até de trabalho análogo à escravidão. O coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) da região Sul, Roberto Liebgott, ressalva:
– Eles estão servindo como mão de obra barata, uma forma moderna de escravidão, em razão da falta de políticas fundiárias para os povos em suas regiões. Se submetem a essa condição porque onde vivem lhes tiraram quase tudo.
Falta de oportunidades estimula vinda ao RS
A falta de oportunidades de trabalho no Mato Grosso do Sul é um dos principais fatores que estimulam a vinda de indígenas ao Rio Grande do Sul. Desempregado há cinco meses, Cleberson Lescano, de etnia kadiwéu, não pensou duas vezes em aceitar o convite para integrar um dos grupos que saíram do município de Miranda com destino a Vacaria. Ele chegou à cidade no início de fevereiro e espera ficar até meados de abril, quando se encerra a colheita da variedade fuji.
– Está muito difícil, não aparece nada de trabalho lá. Conseguir o emprego aqui me deu um alívio – diz Lescano, estreante na colheita da maçã.
A maioria dos indígenas presentes nos pomares gaúchos nesta safra já veio em anos anteriores ao Estado. Conforme ganham experiência, muitos acabam progredindo nas funções dentro dos pomares.
O guarani-kaiowá Adair Gonçalves vem aos Campos de Cima da Serra há sete anos. A bagagem adquirida em meio às macieiras o levou ao posto de segurança no alojamento, o que lhe garante emprego formal com carteira assinada alguns meses além do período da colheita.
— Organizo as turmas que vão chegando e cuido para o pessoal não fazer bagunça – resume Gonçalves, que fica a cargo de uma fazenda com mais de 700 pessoas, sendo 70% índios das etnias guarani-kaiowá, kadiwéu e terena.
Eles costumam voltar para suas casas ao final da colheita, em abril, mas já há casos de quem decidiu fixar raízes no Rio Grande do Sul. Eliel Pereira, de etnia terena, veio em 2019 pela primeira vez para atuar como safrista e se apaixonou pelo trabalho com a fruta. Um dia tomou coragem para conversar com o supervisor da empresa, pediu emprego fixo e teve a solicitação atendida.
– Nunca tinha visto um pé de maçã na minha vida. Fui conhecendo como funcionava a colheita e tive a oportunidade de ficar. No futuro, quero trazer minha família – projeta Pereira, que tem uma filha de cinco anos.
Durante a colheita, ele monitora as turmas de safristas, compostas por seus antigos colegas de aldeia. Ao fim do período, ajuda a cuidar dos pomares, fazendo a poda e outras atividades relacionadas à manutenção das árvores.