Assédio, ameaças e agressões fazem parte da rotina de fiscais agropecuários no Rio Grande do Sul. Em março, a Associação dos Fiscais Estaduais Agropecuários do Estado (Afagro) encaminhou ofício para o Ministério Público relatando casos de intimidações para alertar que o Estado "não está cumprindo o seu papel, que é permitir que as ações fiscais sejam realizadas com a segurança necessária e com o treinamento contínuo adequado". Na avaliação da entidade, a redução do quadro e a proposta do governo de terceirizar parte das atividades tendem a precarizar ainda mais as relações.
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"Muitas vezes, o objetivo é intimidar a ação fiscal, fazendo com que o agressor consiga alcançar seu objetivo, que é trocar o fiscal ou substituí-lo por um médico veterinário do município, que, em geral, não possui poder de polícia administrativa e, portanto, tem suas ações fiscais bastante reduzidas", diz o documento encaminhado para o MP.
Tiros na madrugada
Aprovada no último concurso para fiscal estadual agropecuário, em 2014, Fernanda (nome fictício) não imaginava que enfrentaria tantas dificuldades para realizar seu trabalho. Logo nos primeiros meses, os donos do frigorífico que inspecionava sugeriram "vantagens" para que a servidora fizesse vista grossa. Fernanda não aceitou ser corrompida. Foi quando os conflitos começaram.
O estabelecimento, principal empregador em um pequeno município do RS, enfrentava dificuldades financeiras e a fiscal encontrava resistências todas as vezes que precisava determinar a condenação de produtos.
– Nosso trabalho é bastante estressante. Recebemos pressão todos os dias, tanto para liberar no horário (o início do abate) como para nunca impor nada – explica.
A crise do frigorífico foi se agravando e Fernanda passou a ser apontada como culpada até mesmo pelas demissões que ocorriam. Segundo ela, a empresa "mandava na cidade" e fazia questão de passar a ideia de que a "fiscalização estava errada e atuava para prejudicar". Entre alguns moradores e funcionários, a profissional era vista com certo desprezo.
Apesar das pressões, Fernanda mantinha-se firme no seu dever. Até que, no início deste ano, ela foi seguida por uma moto quando se dirigia ao trabalho, de madrugada. Uma semana depois, seu carro foi alvejado por tiros, também na calada da noite. Depois dos dois episódios, não voltou mais para o frigorífico.
– Não tenho dúvidas de que foi para me assustar, e eles conseguiram. Estamos todos os dias na linha de frente, nos expondo.
O frigorífico não sofreu penalidade nenhuma, a secretaria não me ofereceu apoio de tipo algum. Só eu fui prejudicada, tive que arrumar meu carro, que usava para trabalhar, e todo esse tempo estou tentando superar isso.
Cinco boletins de ocorrência em 10 anos
Em uma década de atuação como fiscal estadual agropecuário, Rafael (nome fictício) já se viu obrigado a registrar cinco boletins de ocorrência devido a ameaças sofridas em decorrência do seu exercício profissional. O veterinário passou por várias inspetorias e diz que as pressões e as dificuldades são maiores nos municípios com um grande número de produtores. Quanto maior o rebanho, diz ele, maior a força política e econômica dos pecuaristas, o que acaba reverberando no trabalho de fiscalização.
– Muitos municípios só têm um fiscal e os produtores sabem quem é. Então, eles te perseguem, fazem pressões políticas. Primeiro, vem um conhecido teu e diz "olha, diminui, dá uma parada, não faz assim com o fulano". Depois, vai se agravando até o ponto de chegar a ameaças veladas, de ligarem e ameaçarem tua família – conta.
Quando o trabalho resulta em multas – que, dependendo do tipo de infração, podem facilmente passar a casa dos R$ 50 mil – as pressões costumam aumentar. Nesses casos, Rafael diz que tenta "seguir normalmente, mas ainda mais atento".
– A gente tem que tocar a vida, pois recebe salário e tem um cargo a zelar. Nosso trabalho é focado no bem da sociedade, para que não ocorra um foco de doença, como a aftosa, que seria uma pá de cal no Estado, e para garantir a saúde da população, fazendo fiscalizações, coibindo abigeato e abate clandestino.
Sobre as condições de trabalho, ele diz que voltaram a ficar precárias nos últimos anos e que faltam "coisas básicas", como folha e tinta para a impressora. O fiscal também lamenta a falta de apoio do Estado, que sequer disponibiliza psicólogo ou advogado quando ocorrem ameaças e processos.