Lâmina a lâmina, a folha de butiazeiro pode ganhar nova forma com a ajuda de mãos experientes, que trançam a fibra seca com agilidade e dão vida a uma técnica praticada por um grupo de moradores cada vez menor na área rural de Torres, no Litoral Norte. Depois de atravessar as seis gerações mais recentes da região, a confecção manual de chapéus de palha corre o risco de deixar de existir, assim como os próprios butiazais da espécie B. catarinensis – presentes apenas na região e também na lista de espécies da flora ameaçadas de extinção no Rio Grande do Sul.
Há 50 anos, a produção era fonte de renda complementar para pelo menos 80 famílias inteiras de Torres. Hoje, estaria restrita a menos de 30 pessoas na cidade, segundo o Instituto Curicaca – que estuda o tema na região. Cinco das artesãs mais experientes vivem nas comunidades antes conhecidas pelo artesanato: São Braz, Campo Bonito e Faxinal. Aos 78 anos, Eracy Joaquina Datx da Rocha orgulha-se do período dedicado ao trançar. Neste ano, ela completa sete décadas.
– É uma tradição que passou pela minha avó, pelas tias e minha mãe. Fiz questão de ensinar meus filhos e os meus dois netos. Mas só eu sigo trançando, é por amor mesmo. Um vício – garante.
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Moradora de São Braz desde o nascimento, Eracy ainda faz questão de guardar parte do dia para a confecção de chapéus. Conforme passam as horas, o rolo vai crescendo nos pés da agricultura aposentada. Ela já não tira o sustento do artesanato, mas segue fazendo para não esquecer a técnica. Sem autorização da Secretaria do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado para a venda dos produtos, presenteia os amigos e a família com sua arte. Admitindo não ter mais forças suficientes para extrair em grandes quantidades as folhas dos pés encontrados nas matas, Eracy só faz as peças quando recebe podas dos vizinhos ou dos parentes que ainda têm butiazeiros nos pátios.
Sonho de ensinar a técnica
Depois de tantos anos confeccionando, a agricultora ganhou rapidez na prática. É preciso olhos atentos para acompanhar os movimentos de Eracy. Em 30 minutos, chega a produzir um metro – cada tira tem cerca de 2 centímetros de largura e 30 centímetros de comprimento. No movimento de duas tiras para baixo e duas para cima, passa os dias fazendo os trançados de palha que se tornarão chapéus.
– Sento e faço, sem pensar em outras coisas. Às vezes, cochilo com a trança na mão e a deixo cair. Acho que é uma terapia para as minhas mãos e para a minha cabeça – revela, aos risos.
Temendo que a arte praticada pela família deixasse de existir, Eracy fez parte de um grupo de artesãs que pretendia passar a técnica adiante. Porém, o projeto não vingou e ela seguiu sozinha.
– Meu maior sonho é ensinar, mas os mais novos não têm interesse. Trançar faz parte da minha vida, sempre fiz e vou continuar fazendo – reforça.
Mudança nas relações sociais
Segundo o Instituto Curicaca, o artesanato com a palha do butiazeiro foi uma prática de grande importância na sustentação da rede social local desde 1840. No início do século passado, era comum as famílias se unirem com os vizinhos para trançarem reunidos em uma mesma casa, depois do trabalho no campo. Os homens, na infância, aprendiam a estalar – separar as folhas secas – e a trançar.
Quando adultos, auxiliavam apenas na extração das folhas e no transporte dos fardos de chapéus. O restante do serviço era feito pelas mulheres. Atualmente, a tradicional reunião dos vizinhos se perdeu. A produção se tornou solitária.
– Vários fatores estão influenciando no processo desse saber. As relações sociais mudaram e se fragmentaram quando os filhos e os netos começaram a sair da área rural e perderam o interesse no trançar, que já não traz mais benefício econômico como em décadas anteriores – explica o coordenador técnico do Instituto Curicaca, Alexandre Krob.
Fazer solitário e apaixonado
É também na solidão que a dona de casa Lídia Ramos de Oliveira, 62 anos, de Campo Bonito, em Torres, dedica a vida ao trançar. Neste ano, ela completa meio século da atividade aprendida na infância e que foi sua profissão durante décadas. Hoje, Lídia evita falar no manuseio com a palha como trabalho: se tornou paixão.
O novelo de linha, a tesoura, a agulha, os pregos, o martelo e o molde de madeira deixados sobre uma cadeira ao lado da poltrona favorita de Lídia, logo na entrada da casa da família, revelam que a produção de chapéus pode ter diminuído, mas não terminou.
– Só fui à escola até aprender a escrever o meu nome. As tranças são o que melhor sei fazer na vida – diz, orgulhosa.
Sob risco de extinção
Assim como a atividade do trançar, os próprios butiazeiros correm o risco de desaparecerem da região. É o que revela o levantamento desenvolvido desde 2003 pelo Instituto Curicaca. Entre os anos de 1974 e 2008 houve diminuição de 78% dos remanescentes de butiazais no Litoral Norte. Em 2008 restavam apenas 112,3 hectares de butiazais na região, dos quais 34 hectares ficavam na área de Torres.
Segundo a bióloga Luiza Chomenko, do Departamento de Biodiversidade, da Secretaria do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, oito variedades de butiás são reconhecidas no Estado e todas estão inclusas na lista de espécies ameaçadas de extinção elaborada pela Fundação Zoobotânica. Luiza sustenta que o desmatamento para a agricultura e a expansão urbana – com a construção de condomínios – contribuíram para a diminuição da área com a espécie B. catarinensis.
– Diante desta ameaça, o uso de folhas, frutos e de coquinhos de butiá precisa ser feito com cuidado. Com base no estudo realizado pelo Curicaca e pelo Centro de Ecologia da UFRGS, a secretaria elaborou uma portaria específica para proteger o B. catarinenses – explica.
Resgate do artesanato
Na tentativa de manter viva a história do artesanato com palha de butiazeiro em Torres, o Instituto Curicaca e o Instituto de Biociências da UFRGS produziram no ano passado um relatório técnico de 256 páginas que propõe o “registro do modo de fazer artesanato com palha de butiá na região de Torres como patrimônio cultural imaterial do Rio Grande do Sul”. O estudo foi encaminhado em março de 2016 para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae), que analisa a proposta.
– O reconhecimento dessa técnica, como bem cultural e imaterial pelo Estado do Rio Grande do Sul, reforçaria a importância de manter-se viva a história de uma arte com mais de um século – acredita Alexandre Krob, do Instituto Curicaca.
No documento enviado ao Iphae, os técnicos sustentam que a “essência como bem cultural está nos conhecimentos da natureza, nas relações sociais, na identificação coletiva, na autonomia das mulheres e no domínio das técnicas que permitem colher de forma sustentável as folhas da palmeira, tratar suas fibras, confeccionar tranças e costurar o chapéu de palha. O bem cultural poderia ser registrado como patrimônio imaterial no Livro de Registros dos Saberes" – onde são inscritos os bens imateriais.
Certificação de extrativismo
A portaria apontada por Luíza define critérios para a coleta sustentável de folhas e frutos, respeitando o tempo necessário para a planta regenerar-se. Para um artesão retirar as folhas é preciso passar pela certificação de extrativismo. O processo é gratuito e toda a orientação é fornecida pelos técnicos da secretaria, mas é preciso solicitá-la.
– Essa certidão confere segurança jurídica para os coletores e garante que serão aplicadas boas práticas de coleta, não prejudicando as plantas – justifica a bióloga.
ETAPAS DA PRODUÇÃO DE CHAPÉUS
1) Colheita
Sempre se deixa três folhas em cada butiazeiro.
2) Secagem
As folhas retiradas são deixadas na sombra, quando o tempo estiver seco, por até cinco dias. Quanto mais envelhecidas estiverem quando forem tiradas do butiazeiro, mais manchadas ficam, perdendo a qualidade.
3) Estalar das lâminas
O processo consiste em tirar os talos que unem as duas abas de uma lâmina seca. Desta forma, surge a palha. Esse processo é identificado pelas artesão como “tirar os talos”. Depois de estalar, corta-se a palha no local onde ela começa a afinar para que todas as partes da trança fiquem com a mesma largura.
4) Amaciamento
O amaciamento da palha facilita a costura e o manuseio do material. Utilizando uma faca de cozinha, a artesã raspa toda a extensão da palha para amaciá-la. Outra técnica consiste em enrolar a palha em um pano úmido. Essa etapa é importante para tornar o chapéu mais confortável, mas pode ser dispensada em alguns produtos, como as bolsas mais estruturadas.
5) Confecção da trança
As tranças são feitas com nove, 13 ou 17 palhas. Com um feixe de palha se produz 22 braças de trança. Cada braça é equivalente a 1,10m – para um chapéu, por exemplo, são necessárias 3,5 braças. As palhas podem ter diferentes larguras. Quanto mais fina, menos luz passa pelo chapéu.
6) Despicagem
Como as palhas são unidas uma à outra só por encaixe, depois de trançar é preciso cortar as pontas das palhas que ficam aparecendo. A esse processo, as artesãs dão o nome de “despicar a palha”.
7) Costura
A costura é feita com linha de algodão. Para a produção do chapéu, usa-se um molde no formato da cabeça, ao redor do qual se costura a trança. A altura da aba do chapéu é controlada por uma técnica chamada crescente. O método é aplicado no momento de juntar as tranças e é equivalente ao aumento de um ponto no crochê ou no tricô, o que é feito colocando uma palha a mais em um dos lados da trança. A crescente faz com que a aba não fique encanoada.
Fonte: Trançadeiras e http://www.artesdobutia.com.br