Ninguém representou tão bem a moda e o espírito da década de 1960 quanto a garota de olhos grandes, corpo esguio, cabelo curtinho e minissaia apelidada de Twiggy – uma referência à palavra em inglês twig, que quer dizer galho/graveto.
Essa fase é movida pelos jovens, uma geração que busca por um novo conceito de vida, de liberdade do corpo, de expressão. Esse movimento dos sixties está integrado aos novos ícones que vão se formando, como Twiggy
BERNARDETE VENZON
Pesquisadora de moda e ex-professora de história da moda da Universidade de Caxias do Sul, onde lecionou por 32 anos.
Twiggy reunia tudo isso de maneira muito natural, explica Bernardete; e não à toa foi escolhida “O rosto de 1966” pelo Daily Express.
A britânica, considerada por muitos a primeira supermodelo, está completando 75 anos no dia 19 de setembro. Para celebrar, Donna monta uma linha do tempo dos estereótipos e das tendências que têm regido o mundo feminino nas últimas décadas. Também convida um time de especialistas em direito, moda, história, sociologia, ginecologia e sexologia para refletir sobre os efeitos dos padrões na vida das mulheres, ao mesmo tempo em que relembram importantes conquistas.
A beleza da mulher vai muito além de um aspecto pessoal da vaidade, como muitos querem acreditar. A mesma sociedade que vai execrá-la e chamá-la de fútil por perseguir padrões estéticos é a que cobra dela tais padrões, afinal, a beleza determina uma série de espaços que a mulher ocupa.
INGRID GEROLIMICH
Socióloga, psicanalista e autora do documentário "Explante".
Década de 1960
Foi um marco na história da liberação do corpo feminino, vista no Brasil especialmente com o aparecimento do biquíni nas praias do Rio de Janeiro. Só que na medida em que as mulheres se apropriam do biquíni, começa a haver uma exigência cada vez maior por tratamentos de beleza, como explica Denise Sant’Anna, historiadora, docente da PUC-SP e autora do livro História da Beleza no Brasil (Contexto, 2014):
É de 1961 a primeira reportagem sobre O que é a celulite?, publicada na revista Claudia. A liberação do corpo das mulheres é uma conquista, mas vem acompanhada de novas exigências.
DENISE SANT’ANNA
O modelo de beleza são corpos magros, de quadris estreitos, mas também bronzeados e com um ar de descontração, seguindo a moda “sun, sex and sea” ou “sol, sexo e mar”, criada nos EUA.
A diva do cinema francês Brigitte Bardot simboliza essa época, já que, além da vibe praia e descontração, tem um apelo sexy que passa a ser valorizado. Um nome nacional do momento é a atriz Vera Fischer, coroada Miss Brasil em 1969.
Um olhar mais atento
- Anticoncepcional
A pílula anticoncepcional chega ao Brasil em 1962. Também é um divisor para a liberdade sexual feminina e traz mais autonomia para decidir “quando” e “se” gostaria de ter filhos.
— Foi um marco no deslocamento da mulher enquanto indivíduo, mudando a ideia de que ela só se completaria tendo filhos — explica a ginecologista e sexóloga Sandra Scalco.
- Estatuto da Mulher Casada
Em agosto de 1962 é criado o Estatuto da Mulher Casada, que permitiu que elas não precisassem da autorização dos maridos para trabalhar. Antes, explica a advogada Gabriela Souza, era necessário autorização por escrito do cônjuge. Com a lei, a mulher também passa a ter direito à herança e a pedir a guarda dos filhos em caso de separação.
- Segunda onda do feminismo
Em plena ditadura militar brasileira, o feminismo entra na sua segunda onda. O movimento está em sintonia com o que está ocorrendo no mundo. No feminismo, a Queima de Sutiãs, em 1968, foi um dos momentos mais marcantes.
O ato contra a ditadura da beleza reuniu cerca de 400 mulheres em Atlantic City, nos EUA, em frente ao teatro onde era realizado o concurso Miss América.
— O sutiã era um símbolo da opressão das mulheres, de como elas deveriam se vestir, quase em um paralelo com o espartilho. Era uma demanda por emancipação de seus corpos — descreve a socióloga Marilia Veronese, professora da pós-graduação em Ciências Sociais da Unisinos.
Década de 1970
Há uma influência da contracultura, cujos modelos de beleza se mostram nos meios de comunicação de massa da época, as revistas, a televisão e a publicidade. A magreza continua, representada por atrizes como Raquel Welch.
Os corpos das mulheres também começam a ficar muito parecidos com os dos homens, reina o unissex. Há uma indiferenciação que combina com o que está rolando na sociedade, afinal as mulheres estão saindo para trabalhar, frequentando cada vez mais as universidades e os mesmos ambientes que os homens.
DENISE SANT’ANNA
Historiadora, docente da PUC-SP e autora do livro "História da Beleza no Brasil".
Outra novidade é que a revista Cosmopolitan, no Brasil, onde se chamava Nova, começou a introduzir em capas mulheres morenas, negras, com cabelo crespo, volumoso. Uma das grandes influências responsáveis por balançar os modelos de beleza foi a novela Gabriela (1975), inspirada no livro Gabriela Cravo e Canela, de Jorge Amado, protagonizada por Sônia Braga.
Sobre ir e vir
- Direito a crédito
É aprovada, em 1974, a Lei de Igualdade de Oportunidade de Crédito, que possibilitou que as mulheres não fossem mais discriminadas nos bancos por seu estado civil ou gênero. Até então, apenas aquelas que eram casadas podiam ter cartão de crédito, enquanto as solteiras ou separadas precisavam levar um homem para assinar o contrato.
- Aprovação da Lei do Divórcio
Em dezembro de 1977, o divórcio torna-se uma opção legal no Brasil. A mudança ajuda a inibir o julgamento sobre a mulher.
— Se ainda hoje temos medo de perder filhos quando nos divorciamos, é porque este é um medo ancestral, nossas avós foram criadas com ele — diz Gabriela Souza.
Década de 1980
O ideal de “mulher fera”, na descrição de Denise Sant’Anna, surge e se difunde na década de 1980, a chamada era Yuppie, que se refere a jovens profissionais urbanos, executivos, altamente competitivos e preocupados com a imagem.
Enquanto no Brasil é a época do fim da ditadura e da redemocratização, mundo afora reina aquilo que a historiadora define como um ethos neoliberal, que se reflete na relação das pessoas com seus corpos: trata-se o corpo como se fosse um capital, é preciso investir nele, malhá-lo, saber geri-lo e fazê-lo concorrer consigo mesmo:
O modelo é uma mulher poderosa, autocentrada, uma boss. É a época das ombreiras, do cabelo de leoa, numa inspiração na série "As Panteras" (ao lado, transmitida de 1976 a 1981).
DENISE SANT’ANNA
Alguns retratos são os filmes Uma Secretária do Futuro (1988), na ideia da executiva poderosa, e Flashdance (1983), com a valorização do corpo.
Mais cidadãs
- Constituição de 1988
Uma aliança de deputadas e senadoras forma, em 1988, o chamado Lobby do Batom, grupo que trabalhou para colocar os direitos das mulheres na Constituição Federal daquele ano, a qual garante que homens e mulheres passem a ser considerados iguais do ponto de vista jurídico.
— Essas mulheres foram desdenhadas, alvo de violência e piadas, mas foram as responsáveis para que tenhamos, hoje, o gozo do direito de igualdade perante a lei. Isso abre as portas para outras mudanças que viriam a seguir —afirma a advogada Gabriela Souza.
Década de 1990
O ideal de beleza que começou na década anterior se perpetua até chegar às supermodelos como Claudia Schiffer e Naomi Campbell, e no visual de Lara Croft, do jogo Tomb Raider (1996), que mais tarde seria vivida no cinema por Angelina Jolie.
O que ocorre é uma exacerbação do que já vinha ocorrendo, com um superinvestimento no corpo. Mas enquanto a beleza da mulher boss se acentua, começam a aparecer os resultados negativos disso, matérias sobre cuidados com exageros na academia e nas dietas, além de um uso massivo de antidepressivos como fluoxetina
DENISE SANT’ANNA
As ideias de obesidade e de anorexia ficam muito claras nos anos 1990 e é justamente nessa década que também se populariza a estética heroin chic, que preza pela magreza extrema. A representante máxima dessa tendência é Kate Moss.
O padrão de beleza contribui para um boom nas cirurgias estéticas nesta época. O Brasil, desde então, ocupa sempre os primeiros lugares do ranking mundial de número de procedimentos desse tipo.
Um olhar mais atento
- Conferência do Cairo
A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento das Nações Unidas (CIPD), no Cairo, em 1994, firma o compromisso de 179 países com a promoção dos direitos humanos, da dignidade, do planejamento familiar, saúde sexual e reprodutiva, além do acesso à educação para meninas e eliminação da violência contra as mulheres.
- Terceira onda do feminismo
Teóricos como Foucault e Judith Butler contribuem para uma terceira onda do movimento, marcada pela luta pela libertação da binaridade masculino-feminino e pela valorização das vivências de mulheres de diferentes cores, etnias, e origens culturais.
Década de 2000
Olhando para o Brasil, o início dos anos 2000 é o momento em que o modelo curvilíneo volta, mas de uma forma mais trabalhada: tudo precisa ser tonificado. A valorização dos corpos mais robustos, segundo Denise Sant’Anna, se dá em parte pela influência das funkeiras, que apresentam uma estética de mulher forte, musculosa:
— O músculo virou um direito e também um dever. O grande inimigo das mulheres é a falta de tônus.
Por outro lado, globalmente reina o padrão de beleza supermagro, exemplificado pela socialite americana Paris Hilton e pela ubermodel Gisele Bündchen, com a moda das calças de cintura baixa e blusinhas curtas.
Enfim, mais proteção
- Lei Maria da Penha
É sancionada em 2006 a Lei Maria da Penha, medida que garante às mulheres o direito básico de não sofrer violência em casa e coloca a violência doméstica como uma violação aos direitos humanos.
— É revolucionário, pois abre caminho para a Lei do Feminicídio (2015), Lei Joana Maranhão (2012), Lei do Minuto Seguinte (2013), Lei de Importunação Sexual (2018) e outras — elenca Gabriela Souza.
Anos 2010 a 2024
Ainda está fresco na memória: por volta de 2010 começa uma nítida transição do corpo magérrimo para a moda dos corpos com curvas acentuadas e cinturas fininhas. A tendência conta especialmente com a influência da família de celebridades e empresárias Kardashian, bem como a ascensão das influencers e blogueiras nas redes sociais.
Basta navegar em qualquer portal de beleza ou de fofocas para concluir que esta é a era das harmonizações faciais e, mais recentemente, também dos procedimentos de reversão diante do arrependimento.
A questão dos filtros somada ao surgimento das blogueiras e influencers fez com que mulheres tenham procurado muito a harmonização e outras práticas. O Brasil é líder em plásticas no rosto. Algumas pessoas não estão conseguindo suportar ver a sua imagem refletida na tela como ela de fato é.
INGRID GEROLIMICH
Socióloga.
Segundo ela, uma tendência mais recente, do período pós-pandemia, é a valorização da magreza inspirada na estética e na moda dos anos 2000. Com esse novo padrão, a reversão em procedimentos que tinham tornado os lábios, quadris e glúteos mais volumosos fica mais comum.
Donas do seu corpo
- Feminismo 2.0
Nasce a quarta onda, por volta de 2011. Demandam justiça para as mulheres e combate ao assédio sexual, ao estupro e à violência. Um marco é a primeira Marcha das Vadias, em Toronto, no Canadá.
- Body positive
O movimento ganha força por volta de 2010, com modelos como Ashley Graham. Promove uma visão positiva de todos os corpos, valoriza a saúde e a funcionalidade deles, incentiva amor-próprio e autoconfiança.
- Falar de sexo
O acesso à informação tem democratizado as conversas sobre prazer feminino e possibilitado mudanças em algumas crenças limitantes sobre sexo. As descobertas sobre o clitóris e a criação dos vibradores de sucção também ajudam a tirar um pouco o foco da penetração.