Se você mora no Rio Grande do Sul e não viajou para o Exterior no ano passado, tente se lembrar: quantas vezes tirou os blusões mais grossos e os sobretudos de lã do guarda-roupa? Certamente foram poucas.
Com a ajuda do El Niño, 2023 ficou marcado como o ano mais quente da história do planeta, e o aumento da temperatura global é uma das muitas macrotendências que estão impactando e continuarão a afetar a produção de moda no Estado. Mas há diversas outras, como a urgência de reduzir os impactos ambientais causados pela indústria fashion, por exemplo.
Para pensar sobre os rumos que a produção da moda gaúcha deve tomar daqui para frente, Donna compartilha a seguir os insights de três pesquisadoras do ramo, as quais também toparam vestir marcas que acreditam estarem no caminho certo para o que o amanhã reserva.
Responsabilidade com o futuro
Na leitura de Tati Laschuk, pesquisadora em moda sustentável e professora de Design de Moda na Universidade de Caxias do Sul (UCS), os atores do mundo da moda não podem evitar pensar em sustentabilidade, tanto na sua dimensão social como ambiental. A indústria da moda é a segunda que mais polui no mundo, ficando atrás apenas da petrolífera.
— É preciso pensar em frear a poluição da indústria da moda, que ocorre em várias etapas do ciclo, desde a parte da produção da fibra até a produção do tecido em si, da tecelagem, do tingimento, o qual demanda caldeiras, que geram fases de efeito estufa para serem aquecidas, até o próprio descarte pelo consumidor — detalha.
No quesito tecidos, um bom começo em direção à sustentabilidade seria reduzir o uso de matérias-primas sintéticas, como o poliéster, e priorizar aquelas mais naturais ou mais inteligentes, frutos de pesquisas e reaproveitamento, que impactem menos o planeta. Essa transição pode ser feita de forma gradual para ser economicamente viável.
— Há uma generalização de que material sustentável é só algodão orgânico ou poliéster de garrafa PET, mas não. Tem uma série de tecidos que podem ser usados, como a poliamida biodegradável. Marcas atentas já estão criando produtos direcionados às mudanças climáticas com proteção UV e em tecidos que permitam transpirar. O próprio MIT (instituto dos EUA referência em tecnologia) está pesquisando tipos de fibras de tecido e sua influência na absorção de calor. As universidades têm um papel importante em desenvolver produtos para as novas necessidades dos consumidores — explica Tati.
O aspecto social da sustentabilidade diz respeito às condições de trabalho de quem produz as roupas. As entrevistadas projetam que a cobrança por dignidade e por compensação salarial justa para essas pessoas virá, cada vez mais, dos próprios consumidores, que não desejam comprar peças oriundas de trabalho análogo à escravidão.
Tati acredita que é para esse público mais “desperto” que as marcas gaúchas devem voltar os olhos daqui em diante.
— Claro que há o consumidor que vai continuar comprando de fast fashion, mas para as marcas que produzem no nosso Estado, esse não é o público para o qual elas estão direcionando os seus produtos. É para um consumidor que busca um produto com maior durabilidade e com produção local — considera a pesquisadora.
A longa durabilidade é uma das características pelas quais a moda deve prezar nos próximos anos, aponta a professora de Design de Moda. O argumento é que, embora as peças produzidas localmente, em menor escala e com tecidos mais naturais custem mais caro ao consumidor, elas “se pagam” por serem capazes de acompanhá-los por muito tempo e acabam sendo menos danosas ao planeta.
A professora da Unisinos e pesquisadora em Economia Criativa Paula Visoná acrescenta que quem trabalha com moda não pode se furtar da responsabilidade de, além de cuidar do meio ambiente, ter mais compromisso com a diversidade de corpos, o combate ao etarismo e a busca pela equidade de gênero nos postos de trabalho da indústria fashion.
— Muitas vezes, as marcas assumem o discurso de equidade e diversidade no seu marketing, mas isso não se repete nas suas ações, prateleiras e trabalhadores. Nos boards de grandes empresas da moda, ainda há poucas mulheres em cargos de direção e, nas passarelas internacionais, é raro ver pessoas com mais de 40 anos de idade. Isso precisa mudar. No que diz respeito aos corpos também. Há coisas simples que poderiam ser feitas para atender pessoas cegas, cadeirantes, plus size, entre outros. É importante que as marcas busquem modelagens e soluções para elas — recomenda Paula.
Localismo e ancestralidade
De mãos dadas com a sustentabilidade, caminha a valorização dos produtores, das matérias-primas locais, as técnicas e as histórias ancestrais de cada região. Essa dinâmica tem ganhado o nome de “localismo” e estará em alta nos próximos anos, aponta Camila Farina, curadora, professora de Design e fundadora da OPEN Design Independente.
Os benefícios são a geração de uma renda que fica no local, incentivando as cidades, e o encurtamento das distâncias entre o início e o fim da cadeia de produção, o que impacta menos o meio ambiente.
— Eu vejo muito resgate acontecendo. Um exemplo é aquele crochê da avó, dos tapetinhos de mesa e panos de prato, muito típico da imigração italiana, que vem sendo ressignificado desde 2015 e começa a aparecer em casacos e acessórios incríveis — observa Camila.
Usar criatividade e originalidade para trazer um frescor às técnicas centenárias e às matérias-primas típicas do RS é uma forma de chamar a atenção do mercado para um “Sul não óbvio”, como define a professora de Design:
— Vai além do chimarrão. É algo que desvenda um pouco mais quem somos, qual é o nosso terreno, o que vivemos aqui, valorizando a nossa ancestralidade. Cito como exemplo a designer de Bagé Ana Maria Colares, que fez um resgate da lã feltrada, uma prática do Pampa, e trouxe para luminárias. Ou então as bolsas da Lu Bulcão, que usam retalhos de couro da indústria calçadista e recebem o nome de personagens da literatura gaúcha, como a “Clarissa”, de Erico Verissimo. Isso faz um resgate afetivo e valoriza a nossa cultura e a nossa ancestralidade.
O chapéu do designer Rico Bracco que Tati Laschuk apresenta nas fotos desta reportagem também traz essa pegada ao dar atenção ao talento de mulheres que fazem produtos com palha trançada:
— Esse chapéu é feito a partir da dressa, a trança de palha, uma matéria-prima que pode ser plantada no Estado e que tem mão de obra de senhoras artesãs que fazem essa técnica há anos. Então por que não utilizar a dressa em acessórios? A gente precisa olhar para o nosso entorno e pensar sobre o que podemos usar da nossa cultura, o que é feito localmente e que é sustentável do ponto de vista do material.
Mudando junto com o clima
Observar o que está acontecendo no clima e agir estrategicamente para se adaptar às mudanças também é uma chave de sucesso para o futuro. A título de exemplo, Tati Laschuk descreve que é bem possível que malharias da serra gaúcha que são referência hoje teriam quebrado se tivessem continuado a produzir como faziam nos anos 1980 e 1990.
— Elas produziam malhas pesadas e com matérias-primas que eram específicas para inverno, só que quanto de inverno temos hoje? É uma janela muito curta de frio pesado. O ano passado foi quente, chuvoso e tivemos um inverno menos rigoroso. É importante olhar para isso e pensar: “Se choveu muito, que produto posso desenvolver que vá ao encontro desse tempo mais úmido?”. Talvez uma peça menos pesada, com uma lã de densidade menor, que o consumidor possa usar em outras ocasiões além do inverno? — exemplifica a professora da UCS.
Alargamento da pirâmide
As mudanças demográficas são uma das grandes forças que moldam o nosso tempo e, em especial, a moda, analisa a pesquisadora Paula Visoná. Deixar de prestar atenção a isso, portanto, seria perder uma grande oportunidade de negócio:
— Não temos mais uma “pirâmide etária” e sim um “losango”, com cada vez mais gente entre 30 e 45 anos no Brasil. E nos próximos 10 anos devemos ter mais pessoas 50+. É preciso se ligar nisso. Cadê a representação dessas pessoas na mídia, na publicidade e na moda? As mudanças já estão em curso e são rápidas, mas vejo poucas marcas olhando para isso com seriedade. É preciso construir um relacionamento duradouro com esse público.
Enquanto grande parte das marcas ainda está preocupada em atender o extrato social composto por adolescentes e jovens, adverte Paula, há muitas pessoas acima dessa faixa que não estão tendo o leque de ofertas que gostariam — pessoas com poder aquisitivo e com interesse em comprar. Nesse contexto, um conselho para as marcas do RS é que se questionem sobre onde querem estar nos próximos cinco a 10 anos e com quem querem dialogar.
— Olhando para as outras pessoas, as marcas não precisam trabalhar com coleções tão marcadas e podem construir um relacionamento com um tipo de consumidor que vai dar mais tempo para aquele negócio se sustentar — considera Paula.
Presença no digital
“Com Caps Lock e em Negrito” é como Tati Laschuk pede que se escreva que é ESSENCIAL ESTAR PRESENTE NA INTERNET hoje em dia. Criar um canal de e-commerce e consolidar as vendas online é uma opção que ajuda os produtores a encontrarem ou ampliarem seus públicos. E mesmo marcas de atacado que não têm intenção de vender pela internet também deveriam estar neste meio.
— As marcas precisam estar na internet para criar desejo nos lojistas, mas há uma mentalidade de que não vale investir nessa presença, o que é um grande problema. É a empresa fugindo do cliente. Mesmo que não queira vender online, a marca pode ter um site institucional, mostrando seus valores, quem é e onde está, porque é isso que vai fazer a diferença para o cliente comprar dela — conclui Tati.