O contato próximo e caloroso que Alice Bastos Neves e Kelly Costa têm com os gaúchos pela TV, como as vozes do esporte no Bom Dia Rio Grande, Jornal do Almoço e Globo Esporte, começou a se expandir ainda mais nas redes sociais há cerca de três anos.
Por volta desta época, os vídeos de dancinha começaram a bombar na internet e as duas jornalistas, de 39 e 33 anos, entraram na brincadeira para se divertir. Criaram a hashtag #SextouDasGu e, desde então, publicam uma coreografia nova toda semana. Alguns vídeos somam mais de 600 mil reproduções.
O post descontraído é como um respiro da vida quadradinha, que, muitas vezes, exige uma sobriedade não tão genuína.
— Dançar tem um significado: são mulheres felizes, que se apoiam e querem incentivar outras a se encorajar para o que quer que seja. Tentar ser leve num mundo que é muito pesado com elas. Também tem a ver com a nossa pauta, entendemos as nossas entradas como um momento de leveza. Quando a Kelly entra no Bom Dia Rio Grande, por exemplo, no meio de todas as notícias sobre enchentes e etc, ela entra como um momento de “vamos respirar juntos” – afirma Alice.
Dançar também faz um contrapeso à rotina frenética de duas mulheres que fazem jornalismo esportivo e que têm, juntas, um currículo composto pelas Copas do Mundo do Brasil, Rússia, Catar, a Copa do Mundo Feminina da Austrália e os Jogos Olímpicos do Rio e de Tóquio.
No dia em que receberam Donna para a entrevista, Kelly tinha recém-saído do Bom Dia Rio Grande e manteve um olho grudado no relógio, já que precisava partir logo para gravar na Arena. Alice já estava pronta para entrar ao vivo no JA e dar uma palhinha do Globo Esporte, que comanda desde 2011. Levava na mão um produto para manter o volume dos cachos, que estão querendo retornar ao liso que a pelotense tinha antes da quimioterapia, em 2020, quando combateu e venceu o câncer de mama.
Nas próximas linhas, as apresentadoras projetam 2024 e abrem o jogo sobre a paixão pelo esporte e o desafio de combater o assédio e o preconceito nesse meio. Também contam da vida pessoal e de como a relação delas se transformou: foram de profissionais que se admiram para amigas e cúmplices. E se recusam a ser coniventes com a rivalidade feminina incentivada por aí.
Mesmo entrando no ar praticamente todos os dias, a impressão é de que vocês mantêm um “tesão” verdadeiro pelo que fazem. Qual é o motor disso?
Alice: estou há muito tempo fazendo a mesma coisa, são 17 anos no Grupo RBS e apresento o Globo Esporte desde 2011. É um lugar muito legal, com uma mulher no principal telejornal esportivo do Estado há muito tempo e reconhecido por isso. Porém me sento todo dia na mesma cadeira, bato ponto no mesmo lugar, e isso é desafiador. Para me motivar, crio pequenos projetos ao longo do ano, onde meu olho brilha.
Kelly: criar novidades e se desafiar são formas de se motivar. No Gauchão deste ano, por exemplo, criei o projeto Tchê, Tu Viu?, em que gravei com um grupo de música gauchesca um resumo de cada rodada do Gauchão em forma de canção. Aquilo me exigia, porque o domingo de folga era justamente quando a rodada terminava, então estava sempre pensando no que poderíamos gravar na segunda-feira de manhã, mandando insights para o pessoal. E é isso que me envolve e faz com que eu sempre tenha coisas novas a oferecer.
Os preconceitos e assédios não sumiram, eles ainda existem.
KELLY COSTA
Jornalista e apresentadora.
Sobra tempo para se dedicar a outros interesses?
Alice: às vezes mais, às vezes menos. Por exemplo, voltei a dançar jazz, que eu amo. Faço de uma a duas vezes por semana. Sou uma defensora de que o equilíbrio que buscamos incessantemente não existe e que temos que parar de buscá-lo. Tem momentos na vida em que a gente vai se dedicar mais a alguma coisa do que outra. Como mãe de um filho de oito anos, preciso dizer às mulheres “Desiste desse equilíbrio”, porque para estar em um lugar, eu não posso estar com o meu filho.
Kelly: a gente lida com essa confusão na nossa cabeça de forma muito intensa. Queremos equilibrar e não conseguimos. Não gosto muito da ideia de me abraçar no desequilíbrio, mas gosto de tentar organizar o meu, a ponto de preencher a lacuna. Hoje um pouco mais, amanhã um pouco menos, e assim me organizar. Sou virginiana e tenho um pouco disso.
Como vocês lidam com o assédio no meio esportivo?
Kelly: é bem desafiador, mas acho que a gente tem dado passos importantes no sentido de se impor e de colocar limites. Desde que entrei na redação do esporte, sinto que conseguimos estabelecer barreiras no sentido de “Ó, tu podes chegar até aqui, mas passou daqui, estás me desrespeitando, me assediando, me agredindo”. Os preconceitos e assédios não sumiram, eles ainda existem. Estamos sempre prestes a receber um beijo, ouvir uma piadinha que a gente não gostaria, mas vejo que hoje se pensa um pouco mais antes de fazer.
Kelly, você foi hostilizada em um estádio na época da campanha #DeixaElaTrabalhar, em 2018. Como foi a repercussão disso?
Kelly: havíamos lançado no dia anterior essa manifestação de mulheres que trabalham no esporte, dizendo que basta de assédio e de violência. E no dia seguinte, estou numa transmissão e um torcedor do São José começa a me xingar, aos berros: “enfia esse microfone na ...”, “sua vaga...”.
O narrador escuta as ofensas e diz algo como “Logo depois do lançamento da campanha #DeixaElaTrabalhar, a gente vive um absurdo aqui no estádio, a nossa repórter foi hostilizada”, e o caso ganha uma repercussão grande. Dou meu depoimento depois do jogo, faço um relato emocionada ao vivo no SporTV, aí vou no Serginho Groisman, vira algo importante. Não foi aquela coisa de “Ele xingou, mas deixa assim”, como acho que poderia acontecer em outros tempos.
Alice: se na sociedade a mulher tem mais medo do que o homem quando fica numa parada de ônibus à noite, dentro do estádio a repórter também tem um desafio a mais em realizar o seu trabalho, que é ficar ouvindo, ainda, os maiores absurdos da arquibancada ou até de algum colega que eventualmente escorrega.
E tem outras coisas sutis como, por exemplo, uma reunião de pauta onde um homem defende um assunto e as pessoas reagem com “Uau, parabéns!”, só que eu acabei de dizer a mesma coisa, cinco minutos antes, mas o que falei passou despercebido. Também acontece de uma menina que tem todo o conhecimento, mas que trava e não consegue falar numa reunião com um monte de homens. Hoje vejo que meu papel é chegar nela e dizer “Vai, fala! Esse espaço é teu!”.
A rivalidade entre mulheres é algo que a sociedade estimula. Como fica essa questão para vocês?
Kelly: nunca fomos concorrentes, Alice nunca olhou para mim e pensou “Kelly chegou e vai me substituir no Globo Esporte” e nem eu pensei “Quero tomar o lugar da Alice”. Isso nunca aconteceu, embora as pessoas nos coloquem nesse lugar.
Alice: a gente posta a dancinha e tem os comentários de que “Fulana dança melhor”, “A roupa da ciclana está mais bonita”, e isso acontece porque socialmente fomos criadas para competir entre nós, mulheres. A gente se recusa a viver isso.
Os grandes eventos são os pontos altos para quem faz jornalismo esportivo, e vocês duas tiveram essas experiências. Qual a lembrança mais marcante?
Kelly: participei de duas Copas do Mundo em um ano, coisa completamente maluca. A do Catar 2022 tem o peso de ser minha primeira. Pedro Ernesto Denardin já estava na sua 12ª Copa do Mundo. Eu me emocionava o tempo todo e foi muito bom ter Alice comigo. Já na Copa da Austrália fui sozinha pela RBS TV e foi um desafio grande.
O ponto mais alto foi entrar numa coletiva de imprensa e ver que havia praticamente só mulheres na sala. Isso nunca tinha me acontecido e foi lindo. Esta Copa do Mundo Feminina foi a maior de todas, a mais emblemática, e foi muito impactante ver que a cobertura era majoritariamente feminina, com editoras, assessoras, produtoras, repórteres e até cinegrafistas mulheres.
Alice: o grande evento é um sonho, mas é estar 30 dias longe de um filho. Eu descobri que estava grávida do Martin no meu primeiro dia de Copa do Mundo do Brasil, em 2014, quando abri o exame dentro do carro da empresa. Não contei para o pai dele naquele momento, deixei para a noite, já que eu tinha um jogo antes.
Contei para o Márcio Meneghini, produtor da equipe na época, enquanto caminhávamos pelo Caminho do Gol indo ao primeiro jogo no Beira-Rio. Falei “Eu estou grávida, ninguém sabe e ninguém vai saber. Estou te contando por que se eu tiver qualquer coisa, um desmaio, tu avisa: “ela tá grávida!”. Fiquei com medo de que me economizassem na cobertura. Estava com 29 anos e tri pilhada. Cobri toda a Copa grávida e só comecei a divulgar perto da final da competição.
Temos uma parceria que parte de uma admiração e segue como diversão e leveza.
ALICE BASTOS NEVES
Jornalista e apresentadora.
Como o Martin lida com a sua ida para as coberturas, Alice?
Alice: o tempo foi passando e ele foi entendendo. Só que na Olimpíada de Tóquio 2020, especialmente, era pandemia e eu e ele vínhamos de um período muito grudados. Estava em tratamento do câncer de mama e morando na casa dos meus pais. E aí, quando estou no portão de embarque, com cinco homens, Martin diz “Não vai mãe!” e começa a chorar.
Eu choro e os guris entram, e fico na porta até que minha mãe segura ele no colo, olha para mim e grita: “vai, minha filha! Vai que ele vai ficar bem!”. Nenhum homem tinha efetivamente a capacidade de entender a cena, mas as esposas que estavam com os filhos, choravam junto. Conto essa história porque eu tive minha mãe para dizer “Vai!”. Para fazer a conta fechar, nessa pegada de trabalho e maternidade, às vezes é preciso alguém que te dê um empurrão, porque senão, como mãe, tu fica. Afinal, nasce uma mãe, nasce uma culpa.
Como é a parceria entre vocês e o que admiram uma na outra?
Alice: a Kelly é quase ingênua de tão boa, o olhar dela para as pessoas é muito bom. Minha reação é ficar tipo “gruda em mim e vamos juntas”, porque quem tem esse olhar para o mundo é alguém em que a gente tem que se colar. Temos uma parceria que parte de uma admiração e segue como diversão e leveza.
Kelly: já tínhamos uma união como mulheres da redação, mas o #SextouDasGu nos uniu mais como parceiras e amigas. A Alice é toda essa potência que vocês vêm. E por mais que, dentro dela, talvez esteja se recuperando do cansaço e dos dias que não são tão bons, ela está sempre entregando o melhor. Ela tem muita sororidade e isso é muito empoderador.
Para 2024, quais são os planos que estão no horizonte?
Alice: 2024 é o ano das Olimpíadas Paris. A gente nunca sabe o quanto vai realizar e o quanto estaremos na cobertura, mas é sempre um ano diferente quando tem grande evento esportivo.
Kelly: eu ainda não fui para nenhuma Olimpíada, viu? Só abrindo um parêntese aqui! (Risos)
Alice: também teve uma mudança importante na minha vida em 2023, que vai continuar reverberando em 24, que é um relacionamento. Fiquei muito tempo sozinha, sou separada do pai do Martin desde que ele tem dois anos, então há o plano de uma nova construção familiar com o Tiago Cirqueira, o Martin e eu. Vai ter uma casa nova em 2024 e é um plano pessoal muito legal.
Kelly: eu vou me casar em 2024 com o amor da minha vida, Bruno Halpern, que também trabalha na RBS TV. Ainda não tenho planos de maternidade, gosto de dar um passo de cada vez. Vai ser um ano de muitas demandas profissionais. Estou muito feliz e realizada, pessoalmente falando, e meu plano é esse, depois a gente vê.