“O hip-hop começou com uma mulher”, entoam com orgulho as rappers gaúchas Cristal, 21 anos, e Negra Jaque, 36. Elas dizem isso porque ficou registrado na história que Cindy Campbell, ao lado do seu irmão, o DJ Kool Herc, foi quem produziu a festa considerada marco zero da cultura hip-hop, em 1973, no bairro Bronx de Nova York. O movimento chega ao Brasil e ao Rio Grande do Sul 10 anos depois, de modo que este 2023 marca seu aniversário de 40 anos por aqui.
Negra Jaque e Cristal são duas das muitas artistas que estão ajudando a escrever, em rimas, os capítulos desta história. Elas começaram suas carreiras em dois momentos bem diferentes – Jaque quase duas décadas antes –, mas têm vivências parecidas: são mulheres pretas de Porto Alegre que trabalham pesado para trazer as suas narrativas em um meio musical onde as produções masculinas é que costumam dominar os streamings e festivais.
O tempo, no entanto, dá sinais de mudanças positivas. Prova disso é que as duas subirão ao palco do 9º Rap in Cena, festival que ocorre nos dias 28 e 29 de outubro, no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, e que promete ser a edição com maior participação feminina no line-up, com mais de 20 rappers mulheres confirmadas. Também estão entre elas Negra Li, Drik Barbosa e Cynthia Luz. Na semana que antecede o evento, Negra Jaque e Cristal conversam com Donna sobre a importância do protagonismo feminino no hip-hop e os desafios deste trabalho.
— O hip-hop sempre me salvou. Da violência, da depressão, quando tive que cuidar do meu filho sozinha, quando precisei fortalecer outras irmãs que estavam mais fragilizadas do que eu. E foi a partir dessa necessidade que me tornei produtora cultural, por ver eventos onde as mulheres não eram contempladas e não conseguiam se enxergar — afirma Negra Jaque, que também é mestre em Educação pela UFRGS.
Nos documentos, seu nome é Jaqueline Trindade Pereira, mulher criada no Morro da Cruz rodeada por mulheres batalhadoras, sua mãe e suas tias. O dia a dia delas, mães solo que trabalhavam de dia para ter o que comer à noite, serviram de inspiração para a primeira rima de Negra Jaque, aos 17 anos. Em um trecho, dizia: "Vou pedir permissão para falar da parte feminina; Nossa sociedade, criada em seus seios, não as reconhece, não respeita os seus anseios".
— Essas mulheres me fizeram forte, livre e empoderada para poder fazer o que eu quero. Eram todas domésticas, mas não porque escolheram, foi o que sobrou para elas. E estavam sempre levando a vida na angústia porque, por mais que existissem pais, eles eram ausentes, então a sobrecarga ficava nas costas delas — reflete a cantora.
Jaque construiu uma vida em torno do hip-hop e é, hoje, uma voz ativa pelos direitos das mulheres e dos negros na Capital. Começou em 2007 no grupo Pesadelo do Sistema, venceu competições de rima, e deu início à carreira solo com o EP Sou. De lá para cá, produziu hits como Cabelo Crespo e Maria Madalena, que trazem temáticas como a autoestima da mulher preta e os desafios da maternidade. Neste ano, irá lançar o livro Linhas de Cura: Ensaios Sobre Rap, Negritudes e Outras Formas de Existir, que também dá nome ao seu quarto disco, na 69ª Feira do Livro de Porto Alegre.
— As mensagens que vão transversalmente por toda a minha produção são as de fortalecer todas as mulheres, sejam elas como forem, negras ou não. O rap é uma possibilidade de fortalecer os mais jovens, para quem está chegando, dizer que “vai dar certo, que vamos conseguir juntos” — salienta.
Além de lutas
A voz feminina no hip-hop, no entanto, não quer ser limitada a cantar sobre angústia, dor e opressão. Depois de conquistar sucesso nacional com o single Ashley Banks, em 2019, e de se apresentar de vez à cena com o EP Quartzo, em 2021, Cristal Rocha quer usar seu primeiro álbum, Epifania, para falar das descobertas mais recentes sobre a vida, inclusive explorando outros estilos musicais como a soul music e o R&B – o lançamento está marcado para janeiro. O que a artista deseja é liberdade para ser fiel à versão mais recente de si.
— No momento em que mais precisava dizer o que estava entalado aqui, eu disse da forma mais pura e direta. Mas o fato de estar fazendo arte representa essa luta, a quebra de paradigmas da mulher negra e da mulher negra no rap. Então, tem coisas que cansamos de falar, não sou a minha dor, não sou só a minha luta. Quero mostrar que sou vida, sou dança, e que também gosto de falar de festa e curtição — destaca Cristal.
O caminho profissional da jovem da Zona Sul começou em 2017, nas competições de poesia falada, conhecidas como slams. Depois, foi incentivada pelo primo, o produtor musical MDN Beatz, a colocar seus versos “em cima do beat” e migrou de vez para o rap. Mesmo com uma carreira recente, Cristal já teve experiências com nomes importantes do rap nacional. Abriu shows da turnê AmarElo, do Emicida, na Capital, participou de um álbum do rapper mineiro Djonga, e tem como amigos e mentores a rapper paulista Drik Barbosa e o gaúcho Nitro Di, do grupo de rap Da Guedes.
– Fui muito abraçada na cena e me sinto abençoada por ter essas pessoas que me enxergaram, porque é difícil chegar – agradece.
Apesar de reconhecer que há um movimento de artistas fazendo eventos com mulheres e incluindo essas profissionais em projetos, Cristal aponta que a falta de suporte e de visibilidade ao rap feminino ainda é um dos seus maiores desafios. Argumenta que o problema é que “homem só escuta homem”, citando um trecho de um rap da Mc Luanna, de São Paulo.
— Quando temos um grande mercado de produtores homens bem-sucedidos, homens Mc’s bem-sucedidos, um grande mercado de selos de gravadoras em que os donos das gravadoras são homens, eles buscam homens, não mulheres. Então, podemos trabalhar muito mais e não chegar onde eles chegaram. Mas, independentemente se vamos ter o suporte deles ou não, vamos continuar fazendo — projeta a rapper.
Linha do tempo
Foi com o surgimento dos bailes blacks, em 1983, na atual Esquina Democrática, em Porto Alegre, que se deu o início da cultura hip-hop no Rio Grande do Sul. Segundo o rapper Rafa Rafuagi, criador do Museu da Cultura Hip Hop do RS – que abrirá as portas em dezembro – essas festas contribuíram para a capilarização do movimento pelo Estado, sempre marcado pela presença dos seus quatro elementos essenciais: os MC’s (sigla para “mestre de cerimônias”), que sãos os rappers que cantam e rimam, os DJs, os grafiteiros e os B-Girls e B-Boys, que são os dançarinos de breakdance – estilo de dança que, por sinal, estará como modalidade nas Olimpíadas de Paris, em 2024.
Dos anos 1980 em diante, se a linha do tempo do hip-hop gaúcho focasse apenas nas mulheres, seria indispensável escrever alguns nomes:
— Desde o princípio houve a participação de mulheres. Teve a B-Girl Lu, que hoje tem cerca de 60 anos e mora em Guaíba. Ela foi pioneira da cultura hip-hop, dançava na Hackers Crew, um dos primeiros grupos de break do Estado e do país — relembra Rafa, sobre o grupo de dança de rua que se apresentou até 1993.
Entre os anos 1990 e 2000, surgiram nomes importantes do rap gaúcho feito por mulheres. Negra Jaque recorda especialmente de Lica Tito, rapper e cantora que criou o grupo feminino La Bella Máfia, e de As Anastácias, grupo composto por mulheres negras.
— Eu tinha 11 anos quando vi as gurias nesta trajetória. As Anastácias são uma das minhas principais referências porque eram mulheres pretas com uma postura empreendedora, faziam música, tranças, roupas, como eu. Muito do que faço hoje vem delas, porque não é só show e poesia, é também estética, identidade, é preservar essa cultura diaspórica negra que precisa ser valorizada no Estado — ressalta Jaque.
Por volta de 2010, a cena no RS ficou marcada pelas batalhas de rima, como a Batalha do Mercado, fundada por Areta Ramos, uma liderança do movimento hip-hop. As disputas entre MC’s deram mais espaço e conexão para as mulheres, assim como nas competições de slams, que surgiriam depois.
O tempo também trouxe algumas melhorias para as artistas. Na questão técnica, ficou mais fácil e rápido criar suas próprias músicas e fazê-las chegarem ao público pela internet, comemora Negra Jaque. Já a produção mais independente permite que Cristal se envolva em todas as etapas do seu trabalho. O aumento de diversidade e da participação da comunidade LGBT+ na cultura hip-hop, para Rafa Rafuagi, é um dos principais avanços dos últimos anos:
— Há um letramento voltado às práticas antirracistas e não machistas de linguagens. A Jaque, infelizmente, pegou um caminho mais truncado, pegou o hip-hop ainda no extremo do machismo. Já a Cristal pegou uma cena aberta a se conscientizar, o que inclusive permitiu ela se posicionar como ela se posiciona.
Apesar do esforço e da denúncia que é feita por artistas que vão contra a corrente, Cristal e Negra Jaque explicam que é inevitável que alguns problemas característicos da sociedade acabem se refletindo no hip-hop. É o caso da já referida desigualdade de oportunidades de trabalho e da pressão estética. São entraves que existem desde o princípio e que carecem de aprimoramento:
– Ainda somos classificadas de acordo com tom da pele, tamanho da roupa, altura, e estrutura do cabelo. O machismo ainda pega o nosso corpo, seja o da Cristal que está chegando agora, seja o meu. Melhorou, mas ainda enfrentamos muita coisa. O etarismo chega especialmente para as mulheres do rap, porque é uma cultura jovem. Começamos a ouvir “Tu é das antigas”. Gente, eu continuo produzindo discos, fazendo shows, escrevendo livro, o meu tempo é hoje! – conclui Negra Jaque.