Por exatos 38 anos, o futebol feminino foi proibido no Brasil por decisão presidencial. A prática foi vetada em decreto-lei assinado por Getúlio Vargas em 1941 e mantido pelos presidentes subsequentes. Na época, a justificativa era que a maternidade das atletas poderia ser afetada pelo esporte (porque, claro, todas deveriam ter filhos). Portanto, foi considerado ilegal que mulheres contrariassem sua "natureza de ser mãe" em um esporte "masculino e violento". O debate sobre a existência do futebol feminino também dizia respeito ao lugar da mulher na sociedade.
A legislação só foi revogada em 1979. Ou seja, há 43 anos — ontem, do ponto de vista histórico. E, é claro, isso atrasou o desenvolvimento do esporte no país. O Campeonato Brasileiro, nos moldes atuais, surgiu apenas em 2013. Já as exigências quanto à construção de equipes profissionais femininas só foi imposta pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) há quatro anos, em 2019. É assim que, com muita vontade e bola no pé, milhares de mulheres têm protagonizado uma gradual mudança no cenário.
A partir desta pequena pincelada da história da modalidade, não é difícil concluir que o futebol feminino sempre caminhou lado a lado de debates sociais importantes para a vida das mulheres. Ao contrário do masculino, inclusive, não é raro que as jogadoras se posicionem sobre assuntos como igualdade de gênero, racismo e homofobia.
A Copa do Mundo Feminina deste ano, que está sendo realizada na Austrália e na Nova Zelândia, também tem incentivado a conversa sobre alguns temas deste universo. Confira alguns deles:
Identidade de gênero
Em relação à identidade de gênero, quem veste a camisa número 5 da seleção canadense talvez seja a melhor representação para o assunto. Quinn, 27 anos, é a primeira pessoa trans a disputar uma Copa do Mundo e se identifica como não binária (ou seja, que não se entende dentro do gênero masculino ou do feminino). Em 2021, também fez história ao ser a primeira pessoa trans a conquistar uma medalha de ouro olímpica.
Com mãe e pai atletas universitários dos Estados Unidos, Quinn se destacou desde cedo nas seleções de base canadense. Em 2014, passou a vestir o uniforme do time principal. Meio-campista do clube norte-americano OL Reign, Quinn utiliza pronomes neutros para o seu tratamento. No inglês, são they/them; enquanto no português podem ser utilizados elu/delu.
Quinn costuma ser uma voz ativa pelos direitos LGBT+ em suas plataformas digitais. Em novembro de 2021, falou sobre sua cirurgia para a retirada de seios no Instagram: "A jornada de cada pessoa é diferente e, para mim, seguir o caminho da cirurgia afirmativa de gênero me trouxe conforto, confiança e alívio", escreveu, na ocasião. Nos comentários, infelizmente, são várias as mensagens de ódio de quem não aceita que Quinn participe da competição mundial por conta de sua identificação de gênero.
Ex-namoradas em campo
De primeira, a situação pode parecer fofoca. Mas a questão vai além.
No jogo do dia 20 de julho, contra a seleção das Filipinas, a suíça Alisha Lehmann substituiu sua ex-namorada, Ramona Bachmann. Com a repercussão do momento, o público foi atrás de outra situações parecidas que, aparentemente, são comuns dentro do universo do futebol feminino. Por exemplo, uma reportagem do jornal O Globo, publicada no último sábado (22), listou quatro casais de jogadoras que poderão jogar umas contra as outras na Copa.
O interessante sobre o caso é pensar que, no futebol masculino, a homofobia ainda é um tabu muito grande, ainda que grandes clubes do Brasil promovam campanhas para combater o preconceito sobre o assunto. Mesmo assim, são poucos os jogadores homens que vieram a público falar sobre sua homossexualidade. E, quem o fez, precisou enfrentar uma significativa resistência da torcida. Nesse sentido, as mulheres fomentam e lideram a discussão.
Shorts para menstruação
A produção de materiais específicos para o corpo das mulheres também é um passo importante na expansão do futebol feminino.
Em abril, foram divulgados os novos uniformes da seleção da Inglaterra. As peças tinham uma novidade em relação às anteriores: os shorts deixaram de ser brancos, passando para a cor azul. O motivo da troca foi a preocupação das jogadores em relação ao período menstrual.
Ainda que a Associação de Futebol da Inglaterra (FA) não tenha deixado claro o motivo da mudança, a atacante Beth Mead já havia afirmado, no ano passado, que existiram conversas das jogadoras com a fabricante do uniforme para uma potencial troca nos shorts brancos em razão de não serem "práticos quando é aquela hora do mês".
No mesmo mês, a Nike anunciou o lançamento dos uniformes da seleção brasileira para a Copa. Entre as novidades, estão uma tecnologia drifit aplicada nas roupas para permitir que o corpo ventile sem interferir na mobilidade e um short menstrual acoplado ao calção. De acordo com a marca, os shorts menstruais garantem sustentação para que as atletas fiquem mais confortáveis para jogar quando estão menstruadas.
— Toda nossa linha de criação foi tendo como base o corpo feminino. Começamos coletando dados das atletas, mapeados por movimentos específicos. Usamos captura de movimento e, com um avatar digital da nossa atleta, vamos fazendo os ajustes. Usamos, também, a dinâmica dos movimentos do jogo e dos treinos. Tudo isso é analisado antes de chegarmos a um primeiro esboço do material — explicou Charlotte Harris, designer sênior da marca, para o Uol.
De acordo com a profissional, é a primeira vez que a Nike lidera a inovação do material e do corte das roupas utilizando a abordagem do escopo com as mulheres em mente.
Chuteira para elas
Mais uma vez, um lançamento da marca patrocinadora da Copa quebrou um padrão ao pensar em especificidades das mulheres.
Em razão dos pés das jogadoras serem, em média, menores que os dos homens, elas precisam de mais regiões de toque na bola para garantir controle e precisão.