Inês Farias Pinheiro não quis ser mãe. Aos 57 anos, é casada há mais de duas décadas, está aposentada das salas de aula onde lecionou a vida toda e, agora, foca em aproveitar o tempo livre. Ela olha para trás com a tranquilidade de quem tomou a melhor decisão sem carregar arrependimentos:
— Queria levar uma vida focada no trabalho, viajar aos finais de semana e foi o que fiz. Amo crianças, nunca foi falta de amor. Só que nem toda a mulher tem instinto materno.
Mas a serenidade da professora com sua escolha não a protege dos questionamentos alheios. Mesmo numa fase mais madura e com um posicionamento firme sobre não desejar a maternidade, volta e meia ouve comentários invasivos como "Quem vai te cuidar na velhice?" ou "Está passando da idade".
— Sinto que preciso me justificar menos hoje justamente por causa da experiência devido à maturidade. Mais nova, tinha que sempre explicar ou desconversar. Agora, sou mais segura — conta.
Assim como ela, outras mulheres com mais de 50 anos seguem convictas sobre terem aberto mão da maternidade – e também não escapam das indagações recorrentes que vêm de todos os lados. Donna conversou com Inês e mais duas gaúchas sobre o tema. Ana Maria Portela, de 58 anos, é casada e optou, junto do marido, por uma vida a dois. Já Marlene Hoffmann, de 65 anos, trilhou seu caminho longe de filhos ou de um casamento.
Convicção desde cedo
Inês lembra que ser mãe nunca esteve entre suas ambições – ainda criança, refutava a possibilidade de ter filhos mesmo quando brincava de boneca. Como o marido também não almejava a paternidade, o assunto não se tornou um problema e foi discutido desde o início da relação. Ela sempre desempenhou com gosto o papel de professora, só que havia um limite bem estabelecido. Foi ali, acompanhando os pequenos dia após dia em uma escola particular de Porto Alegre, que Inês teve mais certeza de que a maternidade não era para ela:
— Via crianças sofrendo, à mercê das famílias instáveis, pais e mães só trabalhando. Isso mexe com a gente, a responsabilidade de ter filhos é grande. E eu não queria.
Psicóloga de formação, Ana Maria também atendeu crianças em sua trajetória profissional e sempre se deu bem com os pequenos da família. E parou por aí. A aposentada tinha certeza de que não seria mãe desde a adolescência. Jamais por falta de carinho, mas por entender que a maternidade em si vai muito além da gravidez ou dos vídeos fofos de bebês na internet.
— Há um lado que ninguém vê. Sabia que era um caminho longo, pensava muito no depois, quando crescer, a escola, é a vida toda. Sou pé no chão, não vivo de ilusão. Talvez eu tenha decidido não ter filhos quando nasci (risos). Sempre foi claro para mim — define Ana, que mora em Soledade.
No plano da psicóloga, estavam as viagens, a vida a dois e a realização profissional. Na maturidade, ainda redescobriu o gosto pela maquiagem e pela cozinha. Quem segue na mesma batida agitada é Marlene. Moradora de Canoas, ela passou a viajar ainda mais depois dos 50 anos e adora sair com amigas para jogar conversa fora. Em seu planejamento de vida, filhos ou casamento nunca figuraram na lista de prioridades.
— Gosto de criança, amo meus sobrinhos. Saía com eles para baixo e para cima, só que, quando começavam a incomodar, devolvia para os pais. Não quero esse compromisso. Nem namorar eu queria, sempre quis ser livre, não casei, nem quis me dedicar ao lar. Sou dona de mim — pontua.
Aposentada, a gaúcha fez carreira na área administrativa e comercial de grandes empresas e sempre lutou para ser independente. Ela lembra que, quando mais jovem, era obrigada a cuidar de crianças de famílias conhecidas a mando dos pais. Ali, o sentimento de que a maternidade não era o seu caminho aflorou ainda mais, conta:
— Apesar das crianças me adorarem e eu gostar delas, odiava a obrigação de ser responsável por alguém. Nunca quis ser mãe, e, mesmo quando minhas amigas começaram a engravidar, segui com a minha certeza.
Inês, Ana e Marlene combateram de frente a ideia da maternidade como um caminho natural. E essa perspectiva de que "a mulher nasceu para ser mãe", segundo a professora Jane Felipe, da Faculdade de Educação da UFRGS, é uma construção social e cultural imposta às mulheres desde a infância. Há uma tentativa de glorificação das mães, como se fosse algo inerente à natureza feminina, defende a pesquisadora:
— No discurso midiático, no religioso, até no médico, há uma pressão para que a mulher engravide. Dão a entender que ela só será feliz, completa e realizada com a maternidade, o que não é verdade.
Integrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero (Geerge), Jane acredita que, hoje, já reverberam discursos mais críticos à maternidade compulsória, mas as mulheres que optam por não terem filhos ainda são encaradas com estranhamento. E a pressão vem por parte da família, dos amigos e até de desconhecidos.
— Há uma expectativa, uma cobrança discreta muitas vezes, mesmo para as mulheres maduras. Tem que ser uma escolha consciente, a vida muda, é preciso dedicação, disponibilidade emocional, de tempo, de conhecimento. Muitas não querem isso — avalia Jane.
Julgamentos em qualquer idade
Inês, Ana e Marlene cansaram de ser questionadas sobre o fato de não terem filhos. A vizinha, a colega, o médico, a prima e muitos outros perguntavam e até duvidavam da convicção delas. A professora conta que familiares e colegas de trabalho volta e meia a indagavam: "E os filhos, quando vêm?". Ou opinavam, conforme o tempo avançava: "Não está ficando muito velha?". Marlene também foi alvo das mesmas perguntas, e Ana lembra que passou pelo constrangimento de uma conhecida dizer que "ia rezar" para ela engravidar.
— Disse: "Por favor, não faz, porque não quero". É uma opção de vida minha não ter filhos. E ela demorou a se convencer de que eu realmente não queria — conta.
O tempo passou, e o julgamento seguiu. Hoje, as três gaúchas já cruzaram a linha dos 50 anos e vivem a maturidade plenamente sem filhos ou netos. Agora, o questionamento da vez é: "Mas quem vai cuidar de você quando envelhecer?".
— Não vou ter filho para me fazer companhia. Não quero filhos e ponto. Todo mundo falava no tal relógio, mas o meu nunca despertou. Não vou ter filhos para agradar aos outros. Hoje, aos 65 anos, brinco que vou ter que juntar dinheiro para ir a um asilo. Minha sobrinha ri e diz que a família vai cuidar de mim (risos). Brincadeiras à parte, estou me organizando, fazendo uma poupança para conseguir uma boa casa de repouso, não quero incomodar ninguém — diz Marlene.
Inês vai pela mesma linha e é taxativa:
— Cansei de responder sobre "quem vai me cuidar". Filho não é garantia para a velhice, nunca foi, estão cheios de casos aí para comprovar. Muda o questionamento, mas o julgamento segue.
Ana conta que ainda perguntam sobre "quem do casal não pode ter filhos" e até sugerem a adoção. Outro movimento comum é tentar achar justificativas para a sua opção. "Você deve ter tido uma infância muito triste", afirmou uma pessoa certa vez. A psicóloga respondeu sem hesitar:
— Bem pelo contrário, foi uma infância feliz, maravilhosa. Morava em uma fazenda, meus pais se amavam, nunca brigavam. Querem associar a minha decisão a algo que não existe. Não posso optar?
Especialista em questões femininas, a psicóloga Ana Mansur explica que a mulher, independentemente de sua escolha, não vai conseguir fugir do bombardeio do assunto "maternidade" ao longo da vida. E a maturidade pode ajudá-las a se tornarem mais habilidosas em lidar com esses julgamentos:
— O questionamento vem das pessoas em volta e da gente mesma, pois há muitos motivos que levam essa mulher a fazer a sua escolha. Cada história é única, e isso reverbera em nós de maneiras diferentes. Há mulheres que não querem ter filhos porque voltam o olhar para si, para os seus planos. Não são levadas apenas na receita de bolo da vida. Cada pessoa pode escolher os papéis que quer desempenhar, isso não é errado.
Pressão de todos os lados
Ana sempre "falou na lata" que não queria ser mãe. Sem meias palavras, ia direto ao ponto:
— Nunca escondi. E as pessoas, mesmo assim, questionavam, mesmo quem não me conhecia. Eu já saía preparada. Brinco sempre que "quis aproveitar a vida" e dou risada. As pessoas não conseguem entender e respeitar a decisão de não ser mãe — desabafa a psicóloga.
Já Inês optou, muitas vezes, por desconversar o assunto. Ela se considera bem resolvida sobre sua decisão, só que ver sua vida sendo motivo de debate a incomodava:
— Como comecei a namorar mais tarde e casei depois, tudo sempre foi uma pressão. Quando vai noivar? Casar? Ter filhos? Hoje, acho que as mulheres têm mais poder de decisão, apesar do tabu ainda existir.
Marlene conta que respondia conforme tinha vontade. Por vezes, recuou. Outras tantas deu uma resposta bem certeira. Ela conta que não se sentiu pressionada ou se questionou sobre sua decisão, apenas nunca desejou filhos e seguiu a vida em frente. E não media palavras para explicar os motivos de sua escolha:
— Filhos criados, problemas dobrados, não é o que dizem? E não tenho muita paciência. Maternidade não é para mim, preservo meu sono também (risos). Tenho uma vizinha que tem uma bebê, e já ouvi ela chorando de madrugada. Fico pensando: o que essa mãe dorme? Como vai trabalhar no outro dia? Para mim, descanso é fundamental.
As mentiras que cercam o tema
Nem Inês, Ana ou Marlene odeiam crianças. E essa pergunta costuma surgir com alguma frequência nas rodas de conversa. Inês relembra que, uma vez, sua convicção foi abalada justamente quando ouviu uma pessoa dizer que não queria filhos porque "detestava" os pequenos.
— Naquele dia, me questionei. Amo crianças, mas não queria ser mãe. Optar por isso fazia de mim alguém que não gostava de crianças? Tinha certeza de que não era falta de amor, medo de estragar o corpo. O que sempre passou pela minha cabeça é que a minha prioridade era o meu trabalho, me sentia completa. Não sentia a necessidade de ter filhos. Será que isso era errado? Mas coloquei a cabeça no lugar e vi que estava tudo bem — relembra.
Outra acusação recorrente é a do "egoísmo". Ana acredita que o raciocínio é justamente o contrário:
– Não sou egoísta. Filho é para a vida toda, não é só por uns dias. Ser mãe é tempo integral. Não tem folga. Para mim, egoísta é quem tem filho e não atende as crianças como deveria.
Para a psicóloga Ana Mansur, a ideia do instinto maternal ainda é tão forte na sociedade que faz muitas mulheres conviverem com a culpa de "estar com defeito de fábrica" por não desejarem ser mães:
— Está em desconstrução, só que ainda afeta e muito as mulheres. A partir do momento que não sinto isso, parece que estou errada. Só o fato das mulheres questionarem se querem ou não ser mães já é um avanço histórico. Provavelmente, quem tem mais de 50 anos não tinha nem esse espaço de reflexão e teve que ter uma grande coragem para bancar sua decisão.
Completa e feliz
Aos 65 anos, Marlene curte a sua independência e afirma que se sente completa sem filhos. Está com três viagens em vista, não abre mão do exercício físico e é difícil achar um espaço livre em sua agenda.
— Sou feliz, sem compromisso e, ao mesmo tempo, cheia de planos. Me sinto bem. Vejo muitas dizendo que conheceram o amor de verdade ao ter filhos. Nunca vou conhecer isso, e tudo bem. Entendo que foi uma escolha, vivo outros amores verdadeiros. Não me arrependo. Esse amor de mãe, eu agradeço — pontua ela.
Ana se define como uma "turista na vida", pois morou em diferentes cidades pelo Brasil. Escolheu um estilo de vida que não envolvia crianças e, hoje, entende que fez a melhor decisão possível:
— Na minha experiência, me sinto completa. Realizada na profissão, com as minhas coisas, tenho amigas, uma ótima relação com o meu marido. Cada um encontra a felicidade da maneira que quer. Não nasci para ser mãe, tenho certeza.
E Inês olha para trás com a certeza de que conseguiu vencer a pressão e fazer a opção que mais a agradava. Ela ainda encoraja outras mulheres a se conhecerem, traçarem seus planos e não tentarem atender apenas às expectativas alheias:
— Precisamos ser aquilo que sentimos, o que acreditamos. Não adianta ser mãe para dar uma satisfação para a sociedade, sou completamente contra. Decidi não ser mãe para ser feliz da forma que achei que ia ser mais feliz. E sou feliz assim.