A farmacêutica bioquímica Maria da Penha, 76 anos, é o nome por trás da lei específica para o combate à violência contra a mulher no Brasil. Em 1983, ela ficou paraplégica depois de levar um tiro nas costas disparado pelo ex-marido, o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. Em entrevista ao programa Timeline, da Rádio Gaúcha, na manhã desta quinta-feira (23), a cearense relembrou sua trajetória e falou da luta para que a legislação de fato sirva para proteger as mulheres brasileiras de seus agressores.
— A Lei Maria da Penha não veio para punir os homens. Veio para punir o homem agressor, o que é diferente — pontua. — O que serviu de passe foi o meu caso. Fui vítima de violência doméstica no ano de 1983. Meu caso demorou 19 anos e seis meses para ser concluído. Neste período, o agressor foi a júri popular duas vezes, e duas vezes os advogados dele colocaram que o julgamento tinha sido contra a prova dos autos. (...) Quando houve o primeiro julgamento, em que ele saiu do fórum em liberdade porque os advogados entraram com recurso, me decepcionei bastante, me recolhi, fiquei chateada. Resolvi escrever um livro, Sobrevivi... Posso Contar (1994), que considero a carta de alforria da mulher brasileira — contou ela.
O caso ganhou repercussão internacional e foi denunciado para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que entendeu a necessidade de ser criada uma nova legislação brasileira para atender as mulheres vítimas de violência.
Na entrevista, Maria também relembrou a agressão que a deixou paraplégica. Ela acordou de madrugada quando levou um tiro nas costas do ex-marido em 1983.
— Estava dormindo, por volta de 5h ou 6h da manhã, e acordei com um forte barulho dentro do quarto. E, me mexendo, pensei imediatamente: "O Marco me matou". Naquele momento, senti que estava morrendo. Pedi muito a Deus para não deixar que minhas filhas ficassem órfãs de mãe. Os vizinhos me acudiram, me levaram para o hospital, passei dois meses hospitalizada, submetida a cirurgias. (...) A minha lesão quase me deixou tetraplégica. Quando saí de Fortaleza, não conseguia escovar os dentes, não tinha o controle. Quando voltei, dois meses depois, estava recuperada dos membros superiores. Os outros fui trabalhando com fisioterapeutas, algumas cirurgias — contou ela.
— Quem cuidou de mim foram os vizinhos, porque ele foi encontrado com uma corda no pescoço deitado na cozinha. Ele falou que tinha lutado com quatro assaltantes que haviam entrado na casa. Ele forjou. Eu acreditei nessa história, como todo mundo. Quem desmascarou a versão dele foram os vizinhos. O vigia da construção da nossa casa disse que não viu ninguém entrando ou saindo. Os vizinhos, que olharam pelo quintal, não viram ninguém. A cachorra, uma pastora alemã, não latiu.
Maria e Marco se conheceram quando ambos faziam cursos de pós-graduação em São Paulo. Casaram, tiveram três filhas e se mudaram para Fortaleza, quando o colombiano enfim conseguiu sua nacionalização de brasileiro. Após um tempo de relacionamento, Maria percebeu uma mudança no comportamento do marido.
— De uma pessoa amiga, afável, ele começou a se tornar uma pessoa intransigente e violenta, até com as próprias filhas. Isso me desnorteou. Não queria continuar com aquele relacionamento, mas não podia tomar uma decisão — lembrou ela, que tinha medo do que Marco poderia fazer se ela impusesse a separação.
— Como ainda hoje acontece, quando essas mulheres vivem um relacionamento abusivo e não procuram a Lei Maria da Penha para sair da situação, termina em feminicídio, né? Então, não me atrevi a dizer que queria me separar — explicou.
Recentemente, o agressor de Maria virou notícia ao visitar um deputado de Santa Catarina em seu gabinete para "contar a versão dele dos fatos". Sobre o assunto, a farmacêutica bioquímica ressaltou que, para ela, "não pesa nem contribui" o que o ex está fazendo hoje.
— Ele foi condenado a 10 anos de prisão, cumpriu dois. É o trâmite da justiça brasileira. Houve um reconhecimento do meu processo, em que ele realmente foi o autor da tentativa de homicídio. O momento de ele contestar já passou. (...) Para mim, não pesa nem contribui o que ele está fazendo. A minha luta hoje não é em relação a ele. Minha luta é para que a lei que leva meu nome realmente funcione.
Entre as mudanças necessárias no combate à violência contra a mulher, Maria da Penha ressalta a importância do investimento na educação, além da criação de uma ouvidoria para as mulheres que utilizam a Lei possam relatar suas experiências. Também reforça a necessidade de existir um centro de referência para as mulheres serem melhor atendidas (e com discrição) dentro das unidades de saúde dos municípios.