Ela chegou dentro de uma caixa de transporte, essas feitas de plástico resistente que usamos para levar gatos e cachorros pequenos em viagens. Em cima, letras tortas feitas às pressas sobre uma folha ainda úmida transmita o recado crucial: "Cuidado, morde".
No caos da enchente, com cachorros e gatos chegando de todos os lados aos abrigos, focinheiras e caixas fechadas deixavam claro que muito cuidado podia ser pouco. E com Pretinha foi assim. Não que esse fosse seu nome — ninguém sabia nada sobre animal nenhum —, mas era o mais óbvio para chamar uma cadela preta, dona de um expressivo par de olhos pretos, dentro de uma caixa preta e coberta por uma manta azul-marinho.
E de Pretinha mal se via o branco dos olhos de tão escuro que era dentro da caixa. Movida pela compaixão, uma voluntária abriu a porta de alumínio para, segundos depois, fechá-la novamente. Pretinha mordeu os dedos de sua benfeitora. "Cadela do capeta!", exclamou a jovem inexperiente, dando início ao que talvez fosse a experiência mais marcante de seus 19 anos.
O jeito era esperar. Pretinha engordava as estatísticas do grupo dos animais extremamente traumatizados — pegá-los no colo não era uma boa alternativa. Os efeitos do afeto, naquele momento, eram insignificantes.
Nesses casos, a fome costuma ser uma aliada interessante. A estratégia possibilita um acesso mais sutil a esses animais. Mas, mesmo faminta, Pretinha não saiu da caixa, e o máximo que pudemos fazer nos dois primeiros dias foi abrir a portinha, retirar as cobertas sujas de excrementos e empurrar para dentro, do jeito que dava, cobertas limpas. Nem água ela quis. Iguais a ela havia dezenas de animais, e só o tempo poderia acalmá-los.
Quando o assunto é morder quem se aproxima, não se engane com cães pequenos. Ainda que sejam nanicos, até chihuahuas têm uma mordedura dolorosa e com consequências desastrosas quando pegam em cheio o dedo de quem quer apenas ajudar.
Mesmo ciente de tudo isso, cativada por um par de olhos pretos e assustados, no terceiro dia arrisquei abrir a porta e erguer a caixa para cima. Pretinha caiu sobre uma cama quente e macia, preparada momentos antes, rosnando furiosamente para todos que queriam apenas o seu bem-estar. Chegar perto ainda era uma realidade impossível naquele momento.
No quarto dia do pós-enchente, Pretinha finalmente comeu. Um pouco triste e desorientada, a cadela beliscou alguma coisa e voltou a se enrolar em sua cama, de costas para todos e de mal com o mundo.
Amanheceu o quinto dia e, com ele, a expectativa de que Pretinha se sentisse um pouco melhor. Para minha secreta tristeza, ela já não estava mais lá. Pretinha tinha nos deixado. Ignorando meu desejo de tentar domesticá-la, o destino deu àquela pequena fera um lar temporário, o que no fundo é o que desejamos para todos os inocentes que chegavam aos abrigos. Bom para Pretinha e bom para o abrigo que abria vaga para mais um animal perdido.
Contudo, uma pergunta reverberava em meu cérebro: quem teve a coragem de levar uma capeta daquelas para casa?
Amor à primeira mordida
O que aconteceu com Francini Meneghini Lazzari foi comum a muita gente. A vontade de fazer alguma coisa era mais forte do que o bom senso em compreender que a casa era pequena e que os cães, Cacau e Pantufa, já ocupavam o tempo dela e do marido, o engenheiro Douglas Becker.
— Eu precisava ajudar. Nós íamos pegar o animal que tivéssemos que pegar, o mais problemático, aquele que ninguém queria, um cão com poucas possibilidades de adoção e que precisasse de muito amparo e paciência — lembra a servidora.
E Pretinha foi amor à primeira mordida. Depois de morder Francini e Douglas, o casal entendeu que a pequena fera preta de barbicha branca precisava de espaço e compreensão. Cuidadosamente colocada dentro do carro — foi necessário enrolá-la em uma grossa coberta para evitar acidentes —, os novos tutores partiram para o desafio de cuidar de uma mascote com cara de zero amigos, o que até podia colocar em risco a integridade dos outros cachorros da casa.
— Entendemos que aquela reação devia ser autodefesa e a deixamos isolada por dois dias longe dos outros animais — lembra Douglas sobre as primeiras horas com a resgatada em casa. — Fomos indo no ritmo dela, e era de noite que ela se movimentava. Um dia, ela amanheceu no sofá e, então, ajeitamos o lugar para ela se sentir melhor.
Pretinha, que ganhou o nome de Francisca no novo lar, também se mostrou avessa ao uso de coleira e passear virou um novo desafio. Mas o tempo é um remédio valioso. Lentamente, a mascote entendeu que estava entre pessoas amigas e, tão logo perdeu o medo, aceitou de bom grado a aproximação dos outros animais da casa, com o quais começou a brincar.
O esforço valeu a pena. Agora, cinco meses depois da enchente, Francisca se revelou uma cadela dócil e muito amorosa, que retribui o afeto que recebe dos demais membros da família e isso inclui os sobrinhos do casal.
— Estamos felizes por termos dado uma chance para a Chica. Ela é idosa, necessita de cuidados especiais e está em uma família que pode lhe dar assistência até o final da vida — comenta feliz uma mãe de três cachorros vira-latas.
Embora não seja devota a santos, Francini gosta de acreditar que a "cadela do capeta" recebeu uma atenção especial dos discípulos de São Francisco, gente simples e com um coração grandioso que contribuiu para que tudo terminasse do jeito que ficou.
— Na verdade, os abençoados fomos nós — complementa Francini. — Acolhemos uma criatura de boa índole, que só que precisava entender que o mundo, mesmo de ponta-cabeça, pode ser um lugar bacana para se viver.
Agora com o nome do santo e protetor, os dias de inferno de Francisca definitivamente ficaram para trás.
O que fazer para amansar um cachorro bravo
Tenha em mente que cada caso é um caso e que existem inúmeras técnicas que levam em conta o que deve ser modificado. Lembre-se de que muitos dos animais foram criados dessa forma desde filhotes e que pode ser necessário muito tempo até que compreendam que não é necessário usar da agressividade para sobreviver.
O melhor a fazer é estar assessorado por um especialista em comportamento animal. Com ajuda profissional, as chances dos avanços se tornarem permanentes são maiores e o risco de acidentes é menor.
Dicas que costumam ser enfatizadas por adestradores
- Lembre-se de que, mesmo pequenos, esses animais podem causar estragos nas mãos e no rosto
- Não adote feras achando que em poucos dias estarão mansinhas
- Reveja sua vontade em ajudar se tem crianças em casa e outros animais. A tendência de mordidas é verdadeira
- Tenha consciência de que esses animais precisam de extrema dedicação e regras muito rígidas
- Seja firme e carinhoso
- Tenha paciência, paciência, paciência e paciência
- Aproxime-se devagar e use petiscos para reforçar comportamentos desejáveis
- Eleja um local da casa para o cão se sentir seguro
- Respeite os horários de descanso e alimentação. Esses momentos o tornam mais reativo à aproximação de pessoas
- Jamais o leve para passear sem guia
- Não adote animais reativos de grande porte para viver em apartamento
- Entenda que um cão bravo pode atenuar essa característica, mas talvez ainda se façam valer muitos anos de supervisão
- Ainda que se tornem idosos, esses cães ainda podem morder ao se sentirem ameaçados ou invadidos
Daisy Vivian é diplomada pela UFRGS em Medicina Veterinária e Jornalismo. É autora dos livros "Cães e Gatos Sabem Ajudar Seus Donos" e "Olhe-me nos Olhos e Saiba Quem Você É", histórias reais sobre pessoas e seus animais de estimação.