No início, tudo era escuro e assustador. Animais no meio do nada e molhados até os olhos se descobriram dentro de botes, com gente estranha e vozes desencontradas. Alguns mordiscavam seus salvadores do início ao fim do resgate, enquanto outros, aliviados e agradecidos, deixavam-se levar no colo de seus protetores.
Em terra firme, o caos não podia ser pior. Mascotes chegavam às dezenas e por todos os lados. Voluntários não se intimidavam com sarnas, mordidas, uivos e miados incessantes e seguiram madrugada adentro fazendo carinho, quando não cobrindo com o próprio corpo aqueles que tremiam de frio. Colocavam cães e gatos dentro de seus carros, levando-os para suas próprias casas e seus sítios.
Mas o Rio Grande do Sul não está dando trégua para amadores, e o passo seguinte foi perguntar a si mesmo "onde foi que eu me meti? ". Organizar a rotina de animais perdidos, famintos e assustados não é para qualquer um.
Às pressas, abrigos começaram a ser erguidos, do jeito que se conseguia. A expertise d a rede de voluntários nunca foi tão útil e, amparados pelas doações de caixas de transporte, rações, lonas, coleiras e medicamentos, o grande desafio tomou forma.
Carregados no colo, puxados por cordas ou dentro de caixas, centenas de animais molhados começaram a chegar. Os abrigos souberam da existência uns dos outros e uma extensa e ramificada rede de auxílio começou a se organizar.
Realidade
As pessoas têm a ilusão de que um local repleto de cães e gatos é um lugar bacana de se estar. Não se enganem. Animais de todos os tipos e de diferentes perfis de repente se veem um ao lado do outro, e os ânimos começam a se alterar. Sendo assim, mordidas e arranhões ocorrem o tempo todo, rotina conhecida por Letícia Burmann, fundadora da ONG Paixão por Quatro Patas, que circulou por diversos abrigos advertindo sobre o perigo dessa combinação.
— Todos querem fazer rápido alguma coisa, mas é necessário ter o cuidado de separar machos e fêmeas no cio, mães com filhotes e cães agressivos porque as pessoas realmente podem se machucar — enfatizou a voluntária.
Assim, instalados em praças públicas, em paradas de ônibus e até em estacionamentos de supermercados, os voluntários doaram seu trabalho e, aos tropeços, descobriram-se frente a situações inéditas. Como conviver com gatos fofinhos, cães furiosos, bichanos enlouquecidos e outros tantos adoecidos em um único recinto improvisado?
Como se já não tivesse confusão o suficiente, alguns necessitavam de cuidados intensivos, enquanto outros sequer se deixam tocar.
Veterinários
Nessa hora, outros protagonistas entraram em cena. Médicos veterinários rapidamente se comunicaram, e um fluxograma de atendimento clínico teve início. Ainda que de forma tímida, serviços como quimioterapia, exames clínicos, ultrassonografia e até cirurgias puderam ser prestados contando com a ajuda de clínicas e hospitais veterinários.
Os profissionais levaram dignidade e tratamento especializado para os animais, muitos dos quais sequer receberam um vermífugo na vida. Recolher mascotes em uma enchente está muito além de salvar bichinhos. Temos que pensar na questão da saúde pública, pois animais soltos proliferam doenças, e a leptospirose é uma delas. Por conta disso, em nenhum momento de nossa história, precisamos tanto dos veterinários quanto na enchente de 2024.
A sociedade pode ter certeza de que tudo, simplesmente tudo o que foi doado chegou ao seu destino final: os animais. Abrigos maiores enviavam as doações para os menores, e a capacidade de atendimento se expandiu. É possível ver mascotes ganhando peso e muitos serão entregues em situação bem melhores àquelas em que foram encontrados. Tem também os que finalmente chegaram a algum lugar, pois já se encontravam em situação de prolongado e cruel abandono.
Temporários
Para desafogar o sistema e permitir a entrada de novos animais, alguns abrigos já se organizaram no sentido de promover um Lar Temporário (LT) para os resgatados. Uma vez fotografados, os mascotes podem ser acolhidos por uma família até seu tutor ter conhecimento de seu paradeiro.
Francisca Mary da Silva, relações públicas da ONG Paixão por Quatro Patas e voluntária sitiada inicialmente no abrigo do Parque Germânia e agora no Iguatemi, já conta com uma lista de dezenas de animais que se encontram nessa situação. De acordo com ela, "alguns já foram localizados por seus tutores, que estão recebendo notícias direto do lar temporário", já que, mesmo localizados, mascote e tutor seguem separados pela impossibilidade de voltar para casa.
Quem ainda não encontrou seu pet, não perca as esperanças: esforços também vêm sendo aplicados na tentativa de unir informações e fotografias registradas nos diferentes pontos de acolhimento de animais da cidade. Nesses casos, a pessoa identifica seu mascote nos diversos canais, por foto ou vídeo.
Contudo, a surpresa e a emoção espontânea que brotam durante um encontro pessoal é outra forma inequívoca de reconhecimento. Houve um caso em que bastou os cães escutarem a voz da tutora gravada ao telefone para promover uma enorme algazarra entre eles.
A evolução é orgânica, e cada dia que passa a organização se mostra mais eficiente. Aqueles que no início desse processo levaram pets para suas casas agora já podem sinalizar a presença deles, aumentando as chances de sua localização.
O que vale é não ficar parado, e inércia definitivamente não fez parte da vida dos gaúchos nos últimos dias. O importante é deixar o fluxo de informações ativo. No final das contas, todos nós desejamos o mesmo: não apenas o feliz encontro dos animais com seus tutores, mas também um destino melhor àqueles que seguem sob a tutela da sociedade.
Daisy Vivian é diplomada pela UFRGS em Medicina Veterinária e Jornalismo. É autora dos livros "Cães e Gatos Sabem Ajudar Seus Donos" e "Olhe-me nos Olhos e Saiba Quem Você É", histórias reais sobre pessoas e seus animais de estimação.