É triste, é realmente desolador. Nos últimos dias, não há gaúcho, por mais seco e protegido que esteja, que não se solidarize com o que estão passando nossos parentes, conterrâneos e amigos. Todos nós, sem exceção, conhecemos pessoas que perderam alguma coisa, ou a coisa inteira, dimensão que ainda desconhecemos pelo ineditismo que a inundação histórica trouxe para nosso Estado.
Mas história é com a gente mesmo e dela bebemos na fonte. Foram tantos os altos e baixos que meter as botas na lama parece já constituir a essência de nossa gente, força até então desconhecida porque nunca de nós foi exigido tanto.
E assim, sem saber quem ou por onde começou, organizou-se a sociedade para socorrer os seus. No turbilhão das emoções, lançamo-nos nessa corrente de solidariedade, mais perdidos do que cusco em enchente, mas entendendo que até mesmo eles, os cuscos, mereciam nosso amparo.
Não faz muito tempo, recursos e dedicação à causa animal eram quase uma heresia: onde já se viu salvar um cão e não uma criança? Entretanto, atender a animais que sofrem é muito mais do que um capricho, é ajudar aqueles que estão involuntariamente sob nossa tutela, é pedir uma trégua à mãe natureza, essa mesma que nos castiga, e provar que nós, como humanidade, até que não somos tão egoístas, briguentos e autodestrutivos assim.
Se o sol nasce para todos e a chuva cai sobre qualquer cabeça, também os animais são dignos de atendimento. Aqueles que trabalham em nome do bem-estar animal contribuem muito além da saúde pública, mas com o sorriso consolador no rosto daquele que amanheceu tendo consigo apenas a roupa do corpo.
Não bastasse perder a foto antiga da falecida mãe, o berço do filho ou a própria moradia, alguns cidadãos convivem com o peso extra de uma insistente angústia por desconhecer o sofrimento vivenciado por seu animal de estimação, criatura com a qual compartilhava do mesmo cobertor, mas que agora se encontra perdida em meio a água suja e confusão.
Nunca em nossa história fomos tão gratos às pessoas que se dedicam à causa animal. Nesse momento de forte solidariedade e união, deles parte um sopro de esperança, um reencontro que parece pequeno, mas que tem o poder de resgatar um indivíduo mais do que aflito, pessoa que só tem recebido notícias ruins nos últimos dias e que sabe, com absoluta certeza, que momentos difíceis estão por vir.
Porém, no meio de tantos medos e desilusões, vejam só: alguém ainda se deu ao trabalho de cuidar de uma das maiores preciosidades da vida de outra pessoa: o animal da estima, o animal da alma, o animal que talvez seja a única coisa que sobrou em pé — e abanando o rabo — de uma casa inteira. Mascotes têm esse dom, o de levantar um ser humano, e não podemos subestimar o poder restaurador desse reencontro.
Bendita seja a dedicação à causa animal! Resgatar das águas uma criatura viva, seja pessoa, gato ou matungo velho, é acertar as contas com o próprio Criador. É cessar a dor, não importa de quem. Não pudemos nos preparar para tamanho dilúvio, mas divino é poder contar com a boa vontade e o bote do seu João, o tempo e o barco da Maria e o combustível e os jet skis da Brigada Militar, dos voluntários gaudérios, discípulos de Noé que levam animais mergulhados no mais profundo desespero para a segurança da terra firme.
A solidariedade parece ter despontado como uma das principais protagonistas nesse recente capítulo de nossa história, narrativa que descreve uma sociedade acolhedora, um senso coletivo dotado de um coração grandioso, que arrumou tempo e espaço até mesmo para atender os animais que estão entre nós.
Daisy Vivian é diplomada pela UFRGS em Medicina Veterinária e Jornalismo. É autora dos livros "Cães e Gatos Sabem Ajudar Seus Donos" e "Olhe-me nos Olhos e Saiba Quem Você É", histórias reais sobre pessoas e seus animais de estimação.