O que pode ser mais transgressor do que ocupar múltiplos espaços e definir diferentes estilos sem perder a identidade? Há pelo menos 70 anos, todas as referências à moda urbana levam a alguma leitura em jeans.
Em 2022, o denim volta a vestir mulheres e homens da cabeça aos pés, como marca de um resgate ao visual da virada do milênio. Desta vez, o tom é ainda mais democrático, reforçando a posição indissolúvel do material no topo da cena criativa – da inovação ao mainstream.
Falar sobre jeans no universo das tendências é como clicar em um grande ativador de paradoxos. Na mesma medida em que se renova e ressignifica a cada temporada, o material transcende o campo da produção têxtil para impactar aspectos culturais, como explica a professora universitária e pesquisadora de Economia Criativa Paula Visoná.
Há uma carga de contestação, alimentada desde meados dos anos 1980, relacionando o jeanswear à contracultura e, especialmente, definindo uma espécie de uniforme universal das ruas.
— É um universo que permite as subversões, as experimentações, porque é conectado ao jovem. É como se a gente dissesse: “Eu uso jeans, não sou uma pessoa que se enquadra no mainstream”. E isso é interessante, especialmente, no momento em que a gente está. As pessoas reclamam isso para si mesmas, mais do que nunca. Isso faz com que elas construam uma relação realmente simbólica com o jeans. Porque a gente tem vários universos dentro da moda, mas esse é realmente inigualável e, por conta de todas as suas linguagens, é inesgotável, se pode fazer qualquer coisa com ele — discorre.
Realmente, não há peça que não possa ser sonhada ou realizada em denim. E mesmo que transite do cropped aos acessórios para o cabelo, passando por aplicações em sapatos, vestidos e coletes, é nas clássicas calças que o tecido representa o sentido mais amplo da sua potência fashion.
Ostentando o impressionante feito de ter migrado das matérias-primas de barracas, no século 19, aos uniformes de mineradores, algumas décadas depois, até chegar ao vestuário de celebridades, nos anos 1950, elas entraram no imaginário coletivo para nunca mais sair.
Prova disso é o modelo 501® da Levi’s, um ícone que completa 150 anos em 2023 e já vestiu personalidades tão relevantes como diversas, incluindo James Dean, Andy Warhol, Brigitte Bardot, Marilyn Monroe, Madonna, Barack Obama, Brad Pitt e Sarah Jessica Parker, para citar alguns.
— Essa peça é o passado, presente e futuro da história da moda. O 501® é o uniforme dos changemakers, dos que se arriscam, experimentadores, pensadores, originais. Se sabemos uma coisa sobre a juventude, é que ela tem tudo a ver com autenticidade e conexão com as marcas que ama — pontua Renata Sernagiotto, gerente de marketing da Levi’s no Brasil.
A primeira grande criação do segmento tem corte reto e visual clean ultracool – características que estão em alta e sobressaem em modelagens como mom e wide leg. É uma pegada que remete ao conforto e à liberdade de movimentos, segundo Paula Visoná. No entanto, a pesquisadora pontua que o foco está, principalmente, na mensagem por trás do que se veste.
— É uma roupa mais despojada, confortável, mas também relacionada a tudo aquilo o que acontece nas ruas das grandes cidades do mundo, que movimentam muita coisa que a gente acaba consumindo enquanto informação e enquanto fenômenos — argumenta. — Tem essas duas lógicas que parecem dicotômicas, mas não são. Na verdade, se complementam. Essa relação é superexplorada desde a pandemia. O desejo de se reconectar com o espaço para além da casa, de revisitar e de reconhecer a cidade, faz com que o jeans retome seu lugar de maneira tão contundente e forte. E viva.
Por todos os lados
Na esfera das tendências, o ciclo de 20 anos, que delimita a virada de gerações e redesenha a estética vigente, traz à tona os desejos da vez. Volumes, babados, mullets e até modelos controversos, como bermudas, saias mídi e, principalmente, as calças de cintura baixa se destacam. São, conforme Renata Sernagiotto, os códigos visuais mais claros (e efêmeros) dos anos 2000.
— Além disso, estamos vendo lavagens bem destruídas, gastas e com efeitos de muito contraste. Esses são exemplos de modismos, populares no âmbito editorial, mas que têm reflexo mais tímido nas ruas. O que ficará sempre, já estabelecido pelo mercado e pelos consumidores, são os jeans de lavagens comerciais e discretas, cintura alta (que é mais democrática entre os biotipos) e as características como conforto, qualidade e durabilidade. O jeans é, geralmente, comprado para ser um item de médio e longo prazo. Esse, sim, sobrevive aos modismos sazonais — afirma a executiva.
Valorizar os clássicos é também a melhor escolha na opinião das sócias fundadoras e diretoras criativas da Yes I am Jeans, Raquel Oliveira e Fernanda Veríssimo. Há 10 anos no mercado, elas apostam no poder e no estilo do material 100% algodão.
— Existem modelagens que estabeleceram ou popularizaram o denim como conhecemos, no decorrer da história, e que vêm sendo retomadas atualmente com uma superpotência. Estamos falando de silhuetas como a pantalona dos anos 1970 e a mom jeans dos anos 1980 e 1990, acertos que se tornaram básicos e sempre estão em nosso universo de informações — ponderam as empreendedoras.
Elas destacam o alcance do denim em termos de versatilidade, sendo um curinga para variadas ocasiões.
— Temos visto um movimento de aproximação com a alfaiataria, por exemplo. Calças jeans que incorporam elementos tradicionais, em peças mais refinadas.
A questão do luxo
É sempre curioso observar a afinidade de grifes com materiais ao acesso da massa, como o jeans, já que, diz a cartilha, varejo é oferta e luxo é procura. Para a estilista e empresária Lethicia Bronstein, que comanda as marcas Le Bronstein, Maison Lethicia e Pietra by Lethicia, tudo é uma questão de se adaptar ao movimento atual.
— Estamos vivendo uma era de hibridação da moda. Você pode ver alguém com peças inspiradas nos anos 1950 misturadas com outras de referência dos 2000 sem estar fora da moda. Essa criatividade pode vir de várias formas. A moda é sobre expressão — garante.
Essa visão diz respeito a muito do que se vê nas passarelas e nas redes sociais. Democratizar, neste viés, não significa, necessariamente, que todos terão os mesmos produtos ou viverão experiências semelhantes.
— O luxo vem do bom corte, de como se apresenta a peça, dos detalhes feitos à mão sem larga escala, com materiais de altíssima qualidade etc. Tudo o que vemos no mainstream já foi destaque de alguma marca de luxo. Depois que aquelas peças caem no gosto popular, elas são reproduzidas em massa — opina a estilista.
A pesquisadora Paula Visoná, no entanto, observa um reflexo das margens da sociedade na criação. É como se questões sociais ganhassem uma espécie de pompa, mostrando, de forma menos literal, um caráter também transgressor.
— A gente tem que olhar para algumas coisas para além do universo fantasioso da moda. Olhar para o que a Balenciaga já faz por meio do seu diretor criativo, Demna Gvasalia, que é filho de refugiados, por exemplo. É próprio do mercado glamourizar o que seria uma estética ligada à pobreza. Nesse encontro, se origina algo que vai aparecer em todas as instâncias da moda, da alta costura até aquilo que for mais popular possível.
Evolução no Brasil
1948
• Primeira calça jeans brasileira, a rancheira, é apresentada pela marca AB, de São Paulo.
Anos 1950
• A partir de 1956, se popularizam novas propostas.
• Destaque para o modelo Far-West, da Alpargatas, feito em brim coringa, um material pesado e resistente, considerado o primeiro denim nacional.
Anos 1970
• Nasce, em 1972, o primeiro denim índigo blue no país, com a marca Ustop.
• No mesmo ano, o empresário Nelson Alvarenga funda a Ellus, reconhecida por traduzir a atitude de uma geração com a combinação de jeans e camiseta.
• Em 1973, é lançado o famoso jeans da Soft Machine, assinada pelo designer Teddy Paez.
• Em 1974, a Zoomp é fundada pelo empresário Renato Kherlakian, com modelagens que valorizavam as curvas femininas.
• Em 1978, a Staroup aparece na abertura da novela Dancin’ Days, deixando sua marca na história.
Anos 1980
• Consolida-se o jeans no outfit jovem como objeto de desejo.
• Lavagens como stone washed (com pedra, para um aspecto desbotado) e modelagens como a baggy ganham espaço, assim como a chegada do elastano para dar mais maleabilidade ao algodão.
• Se destacam marcas como Forum, Yes Brazil, Dijon, M. Officer, Pool e Zapping.
Anos 1990
• O jeans aparece com potência na mídia especializada, nos lookbooks de grifes e no visual do dia a dia das supermodelos.
Anos 2000
• Já com status de item acessível e democrático, o jeans firma seu papel como peça-chave para todos os gêneros e faixas etárias. É reconhecidamente a peça que nunca sai de moda.
• Em 2022, a pauta da sustentabilidade lança luz às técnicas de reaproveitamento, fortalecendo ainda mais a indústria e o varejo do segmento.
Fontes: pesquisadoras Beth Venzon, Gabi Cirne Lima, Giu Castelo Branco e Jussara Romão – projeto O Jeans do Brasil.