Alexandre Herchcovitch - Antigamente, a transgressão era realmente muito explícita: a caveira, o sangue, o travesti na passarela. Minha roupa era rasgada, sem acabamento, tinha uma coisa crua. Meu segundo desfile foi feito só com tecidos com defeitos, antigos, mofados, que estavam apodrecendo. Hoje minha roupa tem até mais valor por dentro do que por fora. A minha obsessão está em fazer a melhor roupa possível, da forma mais perfeita e durável. Tem gente que cobra que eu seja sempre o Alexandre dos anos 1990. Desculpe decepcionar, mas isso não vai acontecer.
No imprevisível e efêmero mundo da moda, é difícil ver um estilista autoral manter um trabalho estável e desejado por muito tempo. Alexandre Herchcovitch conseguiu. O estilista que dominava a cena underground paulistana nos anos 1990 tornou-se expoente de uma moda sofisticada, com modelagens complexas, alfaiatarias bem construídas, sem perder seu traço urbano e meio edgy.
— Dois momentos foram cruciais na minha trajetória. Primeiro, quando decidi trabalhar com moda e depois, mais recentemente, quando entendi que posso ir além dela e ser um designer abrangente — diz.
Sempre na vanguarda, foi um dos primeiros estilistas do país a tornar o seu nome uma grife e a expandir sua marca assinando linhas de decoração, roupas de cama, óculos etc. Chegou a explorar o mercado internacional, desfilando em Nova York e Londres e abrindo loja em Tóquio. Seus 20 anos de carreira serão comemorados com a publicação de um grande livro, pela editora Cosac Naify.
Nessa entrevista, ele olha em perspectiva para a sua trajetória e conta como a objetividade e o autoconhecimento foram determinantes no trabalho, na criação e na vida em família que leva hoje ao lado do marido, o designer Fabio Souza, e de seu filho adotivo.
Entrevista!
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No início da carreira, você vivenciava o lado underground de São Paulo e sua moda era altamente transgressora. Hoje, você leva uma vida família. Como isso se reflete em suas criações?
O que é transgressor na sua moda hoje?
Herchcovitch - Coloco minha transgressão de outra forma. Há uns anos, fiz um desfile só com roupas ladylike, com tons clarinhos e vestidos com cintura bem marcada. As pessoas pensaram: "Nossa, isso é Alexandre?". Sim, isso foi uma contestação ao avesso. De fato, aquele desfile era agressivo e irônico porque falava de um estereótipo de mulher, que nem sentar pode, nem trabalhar pode, presa numa cintura daquele tamanho. Só que, em uma leitura rasa, ele é só bonitinho.
O fato de ser pai influencia o seu trabalho?
Herchcovitch - Na verdade, não. Eu nem deixaria. Divido muito bem as coisas. Sempre fui objetivo e não gosto de perder tempo. Se me perguntam se prefiro um tecido de bolinhas pretas com fundo branco, ou vice-versa, minha resposta leva menos de cinco segundos. Posso errar? Claro! Mas tenho firmeza porque naquela escolha está embutida a estação que estamos criando, o tema da coleção, o que faz mais sentido comercialmente. Agora, então, estou ainda mais objetivo porque quero ter mais tempo fora do trabalho.
Sua visão da moda mudou nos últimos 20 anos?
Herchcovitch - Continuo vendo a moda como uma forma genuína de falar da gente ou de mentir sobre a gente. A roupa é quase um membro, uma extensão. As pessoas olham e decodificam nossa personalidade por meio das nossas escolhas. A roupa serve para provocar, esconder, contestar. Eu não acredito na frase "Não ligo para a moda".
Você foi um dos primeiros estilistas nacionais a expandir marca, com licenciamentos. Como se descobriu um homem de negócios?
Herchcovitch - Não foi algo planejado, surgiu à medida em que ia recebendo as propostas. Muito cedo como profissional precisei negociar meu nome, patrocínios, espaço dentro do desfile. E nunca fui modesto. Sempre tive a exatidão de quanto ia valer essa troca, por isso que meus parceiros estão comigo há décadas.
Nos anos 90, surgiu ao seu lado uma geração de estilistas que não conseguiu ter uma carreira tão estável.
Herchcovitch - Sempre tive coragem para fazer o que estava na minha cabeça. Isso ajudou a perpetuar a minha marca. Muita gente nesses anos foi engolida por essa máquina que é ter que fazer desfile, uma exposição violenta. Para mim, a cada look que entra na passarela, é como se eu estivesse tirando uma peça de roupa do meu corpo. E, no final, é como se você entrasse pelado. Detesto, essa é a pior parte.
* Estadão Conteúdo
** Fotos: Andrea Graiz, Rede Social e Zé Takahashi, Ag Fotosite