Algum veneno antimonotonia. Quando Cazuza lançou Todo Amor que Houver Nessa Vida, em 1988, ele não sabia. Mas estava apresentando o verso que descreveria distantes 32 anos depois, em meio a uma pandemia mundial, com sua melhor amiga, Bebel Gilberto.
A entrevista por videochamada fazia parte do trabalho intenso de divulgação do novo álbum de Bebel, Agora, o primeiro de estúdio depois de seis anos. A demora no lançamento tem nomes e dores. No período de poucos meses, Bebel decidiu voltar para o Brasil, perdeu um grande amigo, a mãe, a cantora Miúcha, e o pai, João Gilberto. Este, depois de episódios tensos de interdições – tanto que ela abriu mão de ser inventariante e espera, junto com fãs de todo o mundo, o futuro dos direitos da obra de um dos gênios da Bossa Nova.
Logo na primeira pergunta, uma pausa.
– Peraí, vou pegar uma água – diz ela, antes de sumir do enquadramento e deixar na tela o fundo escolhido no aplicativo, um papel de parede de cachorrinhos.
A responsável pela nova paixão atende por Ella, uma shih tzu de cinco meses que participou de vários momentos da conversa – aparecendo no vídeo e nas palavras da tutora, empolgada com a nova membro da família:
– Incrível como eles sabem nos ler com a convivência.
De volta à entrevista, o assunto ruma para o reencontro com o produtor do álbum, Thomas Bartlet, e segue sobre a parceria com Mart’nália. Até que cai o sinal da jornalista. Entre reiniciar modem, tentar logar e todos os processos da vida em teletrabalho, surge a pergunta: onde está Bebel?
– Ela aproveitou e foi correndo lavar a louça – avisa a assessora por WhatsApp.
Então ela retorna ao papo sobre o álbum. Quarenta anos depois de cantar, aos 14, ao lado do pai, uma versão de Chega de Saudade e começar a escrever sua história. Vinte anos depois de lançar Tanto Tempo, o sucesso que vendeu milhões de cópias nos Estados Unidos. A criadora da bossa eletrônica. Nesta entrevista, Bebel também fala de seu jeito, algo como a esquina entre uma cosmopolita Nova York e o despojado Rio de Janeiro:
– Sou transparente. E já me meti em muita encrenca por causa disso.
O quanto que os acontecimentos dos últimos dois anos mudaram o processo de produção de Agora?
Esse disco teve um tempo longo de produção, sim, mas, quando a gente começou, nem sabíamos se faríamos um álbum. A ideia era se encontrar e fazer música. Além do Thomas (Bartlet) ser um ótimo músico, você nunca fica chateada perto dele, um gato, lindo de morrer. Ele tinha um app de filmes antigos, e eu chegava no estúdio e estavam lá muitos clássicos europeus passando. Às vezes, ficava naquela de “não consigo pensar na palavra”. Aí vinha uma parte do filme e eu “uau”.
Coincidiu com uma viagem sua para a Itália. Tem um quê europeu esse trabalho?
Foi uma viagem bem aventureira, comecei a organizar as ideias, me ajudou a ter uma certa disciplina. Mas, mesmo assim, ainda falo que tudo foi muito ao acaso. Até hoje não sei por que liguei para o Thomas. Nem sabia que ele estava tão produtor. Nesse reencontro, foi quando todas as tristezas aconteceram. Foi uma pancada atrás da outra, o Mário (Vaz de Mello, compositor), minha mãe, meu pai, voltar para Nova York para finalizar o álbum. Mas a melhor forma de curar uma dor é ocupando a cabeça. E eu perderia dinheiro, o que não poderia jamais. No fim, terminamos o disco um pouco antes do Natal.
Em que momento entrou a parceria com a Mart’nália?
Sou muito amiga dela, e temos uma amiga em comum que mora em Nova York. Eu cantei pra Mart’nália a melodia de Na Cara, numa ida dela. Depois liguei, cantei por WhatsApp e em dois dias ela mandou a letra. A Mart’nália é virginiana, toda organizada! Seis meses depois, ela foi para Nova York e gravamos. A saída no Rio para gravar o clipe com ela foi a minha grande festa nesta pandemia.
Do cenário atual brasileiro, com quem mais você está criando projetos na música?
Gosto muito do Cézar Mendes, é um velhinho, eu amo. Estou trabalhando com o Chico, meu sobrinho, um fofo, filho do Carlinhos Brown. E também com as irmãs dele, a Lelê e a Clara, que estava fazendo o Novos Baianos. A Letrux, acho o máximo. Esses dias mandei uma mensagem para ela perguntando “posso ser sua amiga?” e ela não respondeu. Não me deu a menor bola, mas ainda assim acho ela interessantérrima. A Maria Luiza Jobim é minha amiga desde que nasceu. E a Tereza Cristina, que está fazendo esse trabalho ótimo.
O que foi que determinou a volta definitiva ao Brasil?
Eu não estava mais segurando indo e vindo. Estava muito caro, com a coisa da interdição do meu pai, que sempre era provisória, e, para completar, a minha mãe ficou doente. Achei que ela ia viver seis meses, e ela viveu nove dias depois que eu cheguei. Nova York faz falta, mas estou perto da minha família, minha casa é linda aqui no Rio, queria ter um cachorro. A maioria dos meus amigos que estavam em Nova York também estão aqui. Mesmo achando que sou tão do mundo. Eu me comunico muito com as pessoas, sou da geração de ficar pendurada horas no telefone. Aqui tenho meus tios, minhas primas. Você se sente diferente.
E sobre a questão do Rio de Janeiro estar careta?
Foi feio eu ter falado isso. Pensando agora, acho que o Rio de Janeiro está é triste. E careta porque temos um presidente careta, aliás, um reacionário, nem careta é. Não estou aqui para falar de política, mas sinto muito isso.
Nunca quis me meter com política. Talvez antes eu tivesse uma atitude elitizada de “não tá chegando em mim, sou americana”. Horrível!
É impossível não falar de política sem citar os ataques ao seu tio (Chico Buarque é irmão de Miúcha). Como isso é tratado em família?
A minha prima Silvia ( Buarque) é obcecada e fala que sou cabeça de vento. Meu tio está certíssimo, sempre vou apoiar, mas nunca quis me meter com política. Talvez antes eu tivesse uma atitude elitizada de “não tá chegando em mim, sou americana”. Horrível! Acho que, na verdade, tento é não ficar discutindo. Mas estamos vivendo momentos difíceis, a raiva, os haters, os jovens que nem sabem quem é Chico.
Sente diferença em ser mulher nos Estados Unidos ou no Brasil?
Com certeza. Se tivesse ficado aqui não seria a pessoa que sou. Acho que minha atitude, minha música, talvez teria ficado mais acomodada.
Mais protegida?
Acomodada mesmo. Protegida nunca fui.
Você fala da relação acolhedora com seu pai, os telefonemas na madrugada. Sobre o que vocês falavam?
Papai tinha uma coisa de antena. Muitas vezes estava ocupado, é claro. Mas, se eu for parar para pensar, ele me atendia a qualquer momento. Falo das madrugadas porque é uma hora em que ele sabia que os chatos estavam dormindo, e os interessantes iam ligar. Ele era muito sozinho.
Ele era seu conselheiro para todos os assuntos?
Para tudo, era um verdadeiro Casanova! Todas as minhas amigas, todo mundo conhecia papai. Às vezes, ele perguntava tanto qual das meninas estava ao meu lado que eu desistia e passava o telefone para ele falar direto com elas. “Fala aí você, então.” Mas sobre paixão, não. Era um pai e filha melhores amigos. Quando eu cheguei ao Brasil, com 14 anos, apesar de respeitar muito ele, era diferente. Já a mamãe era aquela pessoa com quem eu sentava para morrer de rir juntas.
Nunca tentei competir nem me comparar. Criei um espaço grande, um completou o outro
Havia, na juventude, uma cobrança interna pela carreira que eles construíram?
Não, acho que não teve isso. Sempre soube que ia cantar, o que gosto, o que não gosto. Nunca tentei competir nem me comparar. Criei um espaço grande, um completou o outro. Até hoje. Um abraça o outro.
Você cita que compor é como pintar quadros. Quais as suas fontes?
Sou do bem-estar. Se posso ficar alguns momentos sozinha, numa praia, num lugar bonito, é quase impossível não compor uma música. Não compus nada na pandemia, não tive o meu momento. Se sentar em um restaurante com 10 pessoas, pode ter certeza que não vou fazer música (risos). Mas com meus quatro melhores amigos, amo. Meus amigos são muito antigos. E só atravessar uma rua inesperada em um dia de verão é a coisa mais poética do mundo. As folhas das cerejeiras de Nova York, que apareciam muito no Sex and the City...
Você gostava de Sex and the City?
A-do-ra-va. Assisti agora na pandemia a francesa Dix pour Cent, sobre uma agência de atores, agentes com personalidades bem diferentes. Tem todo um lado humor e várias situações, nunca me identifiquei tanto. Tem várias participações de atores que eu amo, como a Isabelle Huppert e a Juliette Binoche.
Falando em Nova York e moda, como você compõe o visual fluido do palco?
Sou uma pessoa que gosta de ficar confortável. Fui dizer que era hippie, e um amigo disse “Não, você tá sempre com um creminho, um óculos bom!”. Mas confesso que já me estressei com roupa de palco, ainda mais em viagem. Tem que ser curinga, poder dobrar, ser especial e não ser repetitiva. Trabalhei em um voz e violão com o estilista Acácio Acacio, que conheci através do Diego Américo, um gaúcho e meu amigo há mil anos, e ele tinha como opção um macacão lindo da Givenchy, que fazia eu ficar comprida, sabe aquele corpo? Imagina quanto tive que pagar por um Givenchy que não me deu nem 10% de desconto! Pode colocar isso na entrevista (risos). Já trabalhei muito com o Valentino, já vesti o Narciso (Rodriguez). Aí comprei essa roupa por uma questão de paixão total. Era tipo cabaré, uma coisa meio Liza Minnelli. No dia a dia, gosto de estar arrumadinha, hoje estou com um vestido Marc Jacobs, molinho, que se adapta e é quase um jersey. Tenho há muito tempo, comprei em Cannes, olha que fina.
Você é exigente?
Sou transparente e me meto em muita encrenca por causa disso. Mas o que acho muito bacana em mim é que aceito crítica, gosto de melhorar. A gente vai ficando velha, vai ficando meio gagá, cheia de mania. E isso também reflete no meu jeito de ser. Por isso, também sei que quem está comigo é porque gosta e quer o meu bem. Quem veio pra ficar ficou mesmo.
É uma nova fase da vida, a gente bate cabeça porque não tem mais o pique de 30 anos, mas tem o pique da experiência e da paciência
Vocês está vivendo o momento da renovação das mulheres de 50 anos. Como se sente nesse contexto?
É muito interessante. Existe um preconceito absurdo, aquela história da gagá. Por exemplo, eu sou a favor da reposição hormonal, comecei há um ano e fiquei muito melhor. Não quis fazer por muitos anos e reconheço que sou muito melhor hoje. Você vai lá e dá um up! Eu já tenho uma alimentação bacana, gosto de cozinhar, uso mil vitaminas, então, por que não? Foi um challenge (desafio) pra mim fazer a adaptação da medicação agora no Brasil, bem na época do lançamento do disco. É uma nova fase da vida, a gente bate cabeça porque não tem mais o pique de 30 anos, mas tem o pique da experiência e da paciência. Amava meus 30 anos, mas era muito impulsiva – se hoje ainda sou, imagina antes. Vi um show da Alberta Hunter quando ela tinha 74, nos anos 1980. Estávamos eu e o Cazuza, fomos para São Paulo para nos nutrir de cultura, e fiquei impressionada. Porque, na minha cabeça da época, ela era uma “velha” cantando pra caramba. Aquilo foi uma inspiração pra mim. Hoje sei que sempre terei alguma coisa em mente.
O que você mal pode esperar para fazer?
A coisa que mais quero fazer hoje é show. Estou louca para cantar essas músicas ao vivo. Mas estou tranquila, tô na minha casa. Oscilo entre ser muito impulsiva e querer ter tempo para fazer as coisas. Hoje consigo atender as pessoas para o lançamento com mais calma. Posso dizer que só penso no ... agoooooora.