Um dia, Adelaine Ribeiro teve de sair às pressas do trabalho para acudir a mãe, Adalva. E sua vida mudou a partir dali. Sua mãe estava tendo uma crise que se revelou sintoma de Alzheimer, a doença que afeta a memória e o organismo e transforma pais e mães em filhos dos filhos. A seguir, ela conta como a logística afinada, a união da família e a ajuda dos amigos a ampararam na decisão de dedicar seu tempo a cuidar da mãe.
Em um início de tarde de uma segunda-feira, em agosto de 2014, minha vida deu uma reviravolta. Naquele dia, foi a primeira vez em que minha mãe apresentou intensos sinais de delírios, agitação, esquecimentos, total falta de percepção do tempo atual e muita agressividade. Meu celular não parava de tocar: tia, irmã...
– A mãe não está bem, vem pra cá!
Coração saltando pela boca, medo, vontade de chorar, mil coisas passando pela cabeça pelo caminho.
No domingo anterior a mãe havia dado alguns sinais de agitação e confusão. Durante a tarde, ela e uma tia que estava hospedando na casa dela foram visitar uns primos. Quando retornaram para casa, a mãe voltou falando coisas láááááá do passado (hoje eu sei que o Alzheimer faz o doente viver no passado e algumas situações que mais marcaram). O problema é que minha mãe falava desses fatos como se estivessem acontecendo agorinha. Aí a ficha foi caindo. Nesta noite, fiquei com ela, que dormiu pouco. Minha irmã e eu fomos trabalhar e a deixamos com minha tia, só que tudo piorou a ponto de me chamarem no trabalho. Quando cheguei, minha irmã já ligava o atendimento de emergência, enquanto eu fui tirando as chaves da casa do alcance da mãe, recolhendo documentos, cartão de banco, dinheiro... Já pensando que ela não poderia sair ou ficar sozinha. E, passados três anos, minha mãe nunca mais ficou sozinha.
Somos uma família pequena, nem eu nem minha irmã temos filhos. Eu, devido a um problema de saúde, não posso engravidar, e minha irmã não teve filho por opção – e assim os acontecimentos foram se encaixando nesses acasos do destino de cada uma de nós.
Depois de inúmeras passagens por diferentes especialistas, neurologistas, psiquiatras, avaliação com psicólogos e leituras para termos informações do que estávamos começando a enfrentar, achamos um médico que nos acolheu e ganhou a nossa confiança. Ele teve sensibilidade ao ver nosso desespero e tornou-se mais um amigo da família. Depois de passado o período de adaptação às medicações necessárias, mudanças na rotina da casa da minha mãe e na nossa rotina para não deixá-la sozinha, fomos readaptando tudo: o principal era a segurança dela, então instalamos câmeras e telas de segurança nas janelas. Foi neste período que tivemos a certeza de que há algum tempo ela já dava sinais da doença. Minha mãe sempre foi uma pessoa muito exigente e solitária. Pedagoga formada e pós-graduada, foi professora e diretora de escola, mas sempre acompanhada de uma tristeza, de uma severa depressão, negligenciada por ela durante anos. Eu, já adulta e vendo o que se passava, pedi que buscasse tratamento, mas ela nunca quis.
É triste dizer, mas há algum tempo já sabia que minha mãe não era feliz, via a tristeza no seu olhar. Somos só nós três – eu, ela e minha irmã – e agora todo este universo da doença de Alzheimer. Digo que tenho outra mãe, apesar dos constantes “apagões” da sua memória, das infinitas repetições das suas perguntas, do cuidado a cada nova etapa da doença, todo dia vejo uma nova mãe, uma mãe que agora é filha. Os papéis se inverteram.
Hoje, cuido da minha mãe 24 horas por dia. Neste meio-tempo de toda a mudança que veio com o diagnóstico, fui demitida do meu trabalho. Como não tivemos “sucesso” com os cuidadores, técnicos que contratamos, sem ninguém pedir, decidi cuidar da minha mãe, assumir esta tarefa. Cuido de uma mãe que não chora mais, porque a tristeza esconde-se nos sintomas da doença, e que por vezes flagro com um olhar sereno, com a inocência de uma pergunta simples que respondo com toda a paciência. Por vezes, rimos juntas das situações em que ela por alguns segundos se dá conta, e assim vamos vivendo um dia após o outro – alguns tranquilos, outros agitados, exaustivos.
Aprendi que o cuidador deve cuidar-se ainda mais. Cuido da minha saúde física e emocional, exercícios tornaram-se meus aliados ao combate da tristeza, do cansaço, do mau humor, dos altos, médios e baixos que qualquer um de nós tem. Investi na terapia, criei uma página no Facebook em que divido informações, adotei uma cachorrinha para minha mãe (e que se tornou a companheira dela), valorizo o lazer e as amizades que acolhem.
Permito-me desabar, dou umas “sequeladas” como eu digo, e aprendi a me perdoar nos dias em que a paciência está no limite devido às inúmeras respostas de inúmeras e repetidas perguntas, do troca-troca de roupas, da rotina de ajudar com a alimentação, com a higiene, dar banho, vestir, segurar a mão e não soltá-la para que minha mãe tenha segurança.
Tenho muito mais momentos de alegrias na companhia dela, procuro sorrir diariamente e sempre agradecer por estar tendo esta oportunidade que não é só de cuidar, mas aprender, crescer emocionalmente com toda esta vivência que o Alzheimer tem mostrado. A vida corre rápida, as mudanças são diárias: atualmente tivemos que fazer uma importante mudança que envolve minha vida, a de meu esposo e da minha mãe. A doença avança rápido exigindo mais atenção, cuidados, e junto com tudo isso vem a questão financeira. Os gastos com medicamentos, terapias para uma melhor qualidade de vida e exames somados ao meu cansaço nos fizeram decidir que minha mãe viria morar conosco. Reformamos o apartamento dela, que é maior, para podermos os três morar com mais conforto.
Minha mãe nunca soube que tem Alzheimer. Às vezes ela diz: “Hum, hoje eu estou estranha. Onde fica a minha casa?”. No último mês, ela veio para nossa casa até a reforma terminar. Ela ainda se confunde e pergunta inúmeras vezes: “Quem mora aqui? Que horas eu vou embora? Cadê minhas malas?”. A gente responde e “despista” sem muita explicação, para ela não ficar mais confusa.
Nossa paciência é testada diariamente, e, conforme o avanço da doença, vamos nos readaptando a novas e exaustivas situações. Sabe isso de virar mãe da sua mãe? É o que vivo todos os dias, no banho que hoje precisa ser auxiliado, na reorganização da casa para evitar fuga e quedas, no preparo das refeições, na mudança da nossa rotina. Tem dias em que ela não quer sair da cama, não quer tomar banho ou quer tomar dois banhos seguidos, ou só comer a toda hora. Aí você é a chata que não deixa ela fazer o que quer. Já ouvi um: “Como tu é ruim comigo”. Respirei fundo e pedi mais paciência e saúde para mim, pois sei que é a doença que está ali, não a minha mãe. É uma mãe que agora é uma criança e exige cuidados.
O Alzheimer vai transformando o doente e também quem convive com ele: a família ou se une ou se afasta. A minha família se propõe a dividir, ajudar, ser solidária nos momentos difíceis, assim nunca me senti só neste processo. Esta é a minha experiência, a minha história que quero compartilhar com filhas, filhos e famílias que têm a coragem para cuidar, amparar e amar.
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