Julia filmou “Música Para Quando as Luzes se Apagam” em Lajeado (Foto: Zeppelin Filmes, Divulgação) Julia Lemmertz viveu Heloísa Schürmann em “Pequeno Segredo” (Foto: Schurmann Film Company, Divulgação)
Em entrevista a Donna, a atriz Julia Lemmertz fala sobre seu mais recente longa, que retrata a transição de gênero de uma garota em Lajeado, compartilha impressões de Porto Alegre e critica o pouco espaço para atrizes com mais de 40 anos.
Assim que o repórter se apresentou, ao telefone, Julia Lemmertz lascou:
– Estou falando com um gremista ou um colorado?
– Gremista.
– Putz! – brincou a atriz, anunciando que é colorada de carteirinha e que estará no Beira-Rio para Inter e Ceará, no dia 28.
A paixão pelo Internacional é uma entre tantas ligações da atriz de 54 anos com o Rio Grande do Sul, onde visita parentes com frequência. Há pouco, passou uma temporada no interior de Lajeado, onde filmou seu mais recente longa-metragem, Música Para Quando as Luzes se Apagam, ainda sem data de estreia. O filme, apresentado (e muito elogiado) no Festival de Brasília, em setembro, marca a estreia na direção do escritor e roteirista gaúcho Ismael Caneppele. A trama deveria ser sobre os conflitos de uma menina em meio a uma crise de identidade de gênero. Mas a força de sua protagonista fez com que a obra tomasse um rumo inesperado.
Dias após o fim da novela Novo Mundo, em que interpretou a vilã Greta, Julia conversou com Donna sobre seu novo filme, a mulher no cinema, o momento político do país e suas impressões recentes sobre Porto Alegre. Confira a seguir trechos da conversa, concedida pela atriz do Rio, com o neto Martin, de 10 meses, no colo.
O seu novo filme gira em torno da identidade de gênero e se passa no interior do Rio Grande do Sul. Como foi tratar desse tema em uma comunidade assim? Há mais preconceito do que em uma metrópole?
Olha, era o que nós esperávamos. Mas tivemos uma surpresa. Fomos até lá com um roteiro do Ismael (Caneppele) baseado nos restos do diário de uma menina que vinha se descobrindo menino durante a adolescência. Eu digo nos restos porque a mãe da menina tentou queimar o diário. Então, você imagina a situação dela. Em Lajeado, em busca de uma menina para fazer esse papel, encontramos a Emelyn Fischer, uma menina de 20 e poucos anos que estava se descobrindo Bernardo. Só que ela era tão fascinante, tão bem amparada pela família e a cidade era tão tranquila quanto a isso, que decidimos jogar o roteiro fora. O filme se tornou, então, algo sensorial. Uma investigação sobre o corpo. Sobre como se dá essa descoberta dentro de uma pessoa. É algo difícil de definir, mas foi algo lindo de fazer.
A partir da tua relação com a Emelyn, como você enxergou a abordagem da Gloria Perez sobre o tema em A Força do Querer?
Achei bacana a forma como ela abordou. Em novela, vale mesmo ser mais didático. Ir ponto por ponto ao apresentar um tema assim. O assunto agora está na nuvem, como dizem. Acho que a geração que vem por aí já vai lidar com essa questão de gênero de uma forma diferente. O que você é, quem você namora… Se você é heterossexual, gay, bissexual, transexual, assexual.
E numa boa, sabe? Respeitando as questões de cada um, os limites de cada um.
Pelo trailer, o filme parece um falso documentário. Então, é um verdadeiro documentário? Sobre uma pessoa transgênero em transformação?
Mais ou menos. Porque a história é a história de verdade dela. Mas o meu personagem, essa mulher que chega à cidade para entrevistá-la, é inventada. Então, tem notas de ficção.
O que não é, de forma alguma, é uma narrativa tradicional com começo, meio e fim. É algo para ser visto, sentido e absorvido pela plateia, não apenas assistido. Acho que (o Festival de) Brasília compreendeu bem o filme. Chegaram a dar um prêmio especial à Emelyn (de Melhor Ator Social), que o Ismael teve o cuidado de levar pessoalmente a Lajeado como resposta à comunidade.
Deve ser inusitado encerrar um projeto experimental como esse e engatar uma vilã de novela, não é? O que a atrai mais?
Ah, eu sou atriz né? (risos) O que eu gosto mesmo é de transitar em tudo o que é lugar. Mas cada vez mais percebo que nesses lugares mais experimentais, menos convencionais, me sinto mais à vontade. Mais eu. Mais conectada com as coisas em que eu acredito. Estou em um momento da vida de fazer o que eu quero fazer.
Atrizes da sua faixa etária vêm batendo bastante na tecla da ausência de bons papéis para mulheres acima dos 40 anos e na diferença de idade entre atores e atrizes protagonistas de novelas e filmes. Como você enxerga isso?
Vale começar dizendo que isso não é papo furado. Como atriz e filha de atriz (de Lílian Lemmertz), reafirmo que isso existe mesmo. Eu já tive fases da minha carreira em que eu desejava ter nascido homem, porque os papéis para eles na minha faixa etária eram muito mais interessantes. E hoje eu acho isso particularmente chato, porque observo muito mais atrizes fora de série da minha idade do que atores. Então, a “concorrência” fica pior ainda. Por outro lado, eu gostaria de não ter de esperar mais por bons papéis. Tem uma ideia? Acho que o caminho é produzir, escrever um roteiro, fazer uma peça… Porque as histórias estão aí para serem contadas, plateias estão aí para assistir e ótimas atrizes aí para encená-las.
Houve casos recentes em que esse “limite de idade” para mulheres já colocou você involuntariamente em polêmicas, né?
Sim. Faço a ressalva de que é ficção, né? Ficção você faz o que quiser. Mas já fui a mãe do Paulinho Vilhena (16 anos mais novo do que a atriz, em Celebridade, de 2003), por exemplo. Eu fingia que era mais velha e ele que era mais novo. Aconteceu em Em Família (2014), também (Julia era a filha de Natália do Vale, 10 anos mais velha). Chato é que sobra para os atores, mas quem deveria ser criticado é quem escala.
Falando em polêmica, o que ficou daquele episódio sobre Pequeno Segredo? Ficou com a impressão de que o filme foi muito falado e pouco assistido.
Sem dúvida, a polêmica prejudicou a forma como ele foi recebido e o tempo em que ficou em cartaz (antes de estrear no Brasil, foi escolhido por uma comissão do Ministério da Cultura para representar o país no Oscar em vez do badalado Aquarius, cuja equipe fizera um protesto no Festival de Cannes contra o impeachment de Dilma Rousseff). Aquilo aconteceu em um momento em que tudo era política, e não tinha mesmo como não ser. Era só do que se falava. Mas foi uma pena porque foi injusto com o filme. Não era esse o lugar dele. É uma história linda de uma família (os Schürmann, família de velejadores que adota uma menina com o vírus HIV) que foi tão generosa ao compartilhar conosco algo tão dolorido para eles, achei tudo isso uma pena. Mas eu ainda tenho fé de que o tempo vai fazer justiça ao filme. Vai colocá-lo em seu lugar.
E você acha que os ânimos melhoraram desde então? Você, que transita muito entre Rio e Porto Alegre, como percebe o momento das duas cidades e do país?
Olha, não acho que melhoraram muito não. E acho que ainda vai piorar antes de começar a melhorar. Estou sempre em Porto Alegre. Sou colorada, estou sempre vendo tios e primos. Desde a adolescência, estou aí com frequência. Dessa última vez, fiquei meio impressionada. Achei Porto Alegre triste. Achei as pessoas griladas, a cidade descuidada. Sei que há uma questão geral envolvida, que não é só aí. Mas o Rio, por exemplo, tem uma natureza exuberante que às vezes faz você esquecer do resto. Porto Alegre sempre foi ela por si só. A cidade, o entorno e as pessoas. E o Rio Grande do Sul sempre se manteve, estivesse como estivesse o restante do país. Eu me assustei com o que eu vi, confesso.
Acho que você não está sozinha nessa percepção. Mas há uma certa angústia de não saber bem o que fazer para sair dessa. Qual é a sua opinião sobre como melhorar as coisas, aqui ou aí?
Acho que o primeiro passo é se colocar, não se eximir de responsabilidade. Há muito tempo nós não agimos como cidadãos. A gente deixa tudo na mão do outro, do governante. E, além de tudo, a gente elege mal e não sabe como cobrar depois. É a hora de pensar no que a gente fez até aqui e no que vamos fazer daqui pra frente. Por um lado é ruim, mas, por outro, é um “se liga” geral. Está na hora de dizer uns “não”. Não, não vai vender parte da Amazônia. Não, não concordo com isso e com aquilo. Eles não vivem dizendo “pelos meus filhos, pelos meus netos” naquele circo que virou Brasília? Então, está na hora de pensarmos nos nossos filhos e netos também.
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