Anaadi se prepara para lançar álbum de estreia nesta terça (10), no Theatro São Pedro. (Foto: Isadora Neumann) No braço, a cantora leva poema que resume filosofia de vida. (Foto: Isadora Neumann)
Ao assistirem a Aladdin, era normal que as crianças da década de 1990 se encantassem com a cena do par romântico da animação da Disney cantarolando sobre um tapete voador ao som de A Whole New World (Um Mundo Ideal, em português).
Os meninos, provavelmente, desejavam ser o herói. Já as meninas se imaginavam como a princesa Jasmine. Mas a pequena Ana Lonardi – agora Anaadi, como passou a se apresentar – acelerava a fita VHS até o pós-créditos, quando aparecia um videoclipe da canção e a cantora norte-americana Regina Belle se revelava. Anaadi não queria ser Jasmine, queria ser Regina.
Essa história ela conta em uma das cenas de Arte das Musas?, documentário idealizado pela própria Anaadi, em que diferentes musicistas mulheres da cena local falam sobre a profissão e seus percalços (o interrogação no título é justamente para quem pensa que eles não existem).
– A criança é muito sábia. A gente se conhece melhor nessa fase da vida. E eu, como negra, me identifiquei com aquela figura cantando no final. Ela cantava como eu gostava de cantar e se parecia comigo. Não era comum, para mim, ver pessoas negras. Na minha escola, de classe média, havia apenas eu e outra menina – se recorda Anaadi, que logo começaria a frequentar aulas de canto e hoje está às vésperas do grande evento da sua carreira.
Embora não almejasse o tapete mágico da Disney, a cantora gaúcha está prestes a alçar voo lançando oficialmente o seu primeiro álbum em um espetáculo no Theatro São Pedro, na próxima terça-feira (10), às 21h. Noturno – concebido como a primeira parte de uma trilogia – é resultado de um processo longo, iniciado logo depois de a artista aparecer em rede nacional cantando Explode Coração, de Gonzaguinha, e fazendo as cadeiras vermelhas do reality show The Voice Brasil girarem para conhecer a dona daquela voz ao mesmo tempo grave e suave.
Anaadi deixou o programa na terceira fase, sem que o técnico, o cantor Daniel, ou Thedy Corrêa, comentarista do programa na RBS TV, tivessem um reparo sequer a fazer nas suas apresentações, que circulavam pela MPB, pelo samba e pelo jazz. Era 2013, e Anaadi conta ter amadurecido um bocado desde então:
– Aprendi, por exemplo, que não dá para agradar a todo mundo. Ninguém é perfeito, e não é para e nem sobre pessoas perfeitas que eu componho, pelo contrário. Noturno é justamente sobre pessoas tortas, pessoas fora dos padrões procurando lugar no mundo. Até porque mesmo pessoas que se encaixam nesses padrões, se você for olhar de perto, também podem estar infelizes. Vai se conectar comigo quem tiver a convicção de que o ser humano leva consigo o desejo natural de evoluir, de tentar ser mais feliz e mais leve.
Esse mesmo raciocínio se desdobra em diferentes canções. Ela se recorda, por exemplo, de uma ocasião em que assistia a um show de uma mulher quando ouviu o comentário de um homem de que, o que faltava para aquela artista no palco, era ser “um pouco mais gostosa”. Anaadi foi para casa pensando naquilo e na sua infância. Filha de um pai negro carioca e de uma mãe branca, descendente de imigrantes italianos, Anaadi se sentia um alienígena que pousara no Rio Grande do Sul.
– Ser diferente é difícil. Eu não era apenas uma criança negra em meio ao padrão gaúcho de loiras. Era também alta e grandalhona. Tenho 1m79cm, esse cabelão e tudo mais. A gente demora anos para assimilar que isso também é uma forma de beleza, além de outras tantas que não estão na aparência. Daquele comentário, pensando depois em todo um trabalho de construção da minha autoestima, surgiu a letra de Sexy Antagonista – conta a artista.
Os versos falam por si: “Minha beleza mora atrás do que se pode revelar no espelho. Meu corpo não é fruta nem capa de revista, é toque sentimento e surpresa. Deixa o meu samba te levar. Larga esse gosto estreito, para encontrar um pouco mais de verdade”.
Ajudou, para chegar a esse e outros insights, a faculdade de Psicologia que a cantora cursou na UFRGS em uma espécie de acordo com os pais, enquanto pensava se investiria ou não a sério na carreira musical. Em meio a um dilema existencial, chegou a passar um ano sem cantar, com o sonho suspenso:
– Eu me questionava se não estava fazendo música apenas pelo desejo de aparecer e de ser amada. Minha sorte é ter descoberto que a arte e a psicanálise estão muito próximas. Porque a arte também é um espelho do ser humano. Um espelho que se movimenta. Quando comecei a compor e a conhecer pessoas, o trabalho foi fazendo mais sentido. Decidi seguir porque, com a música, atinjo mais pessoas do que sentada em um consultório. Não que eu ache que esteja fazendo para os outros, a gente sempre faz primeiro para si. Mas a música é curativa para mim e também para os outros que se identificam comigo.
De certa forma, Anaadi ainda equilibra suas inseguranças em forma de versos e sambas:
– São duas vozes dentro da gente. Uma que confia em si mesma e outra que duvida. Sei que tenho talento e sei que trabalho muito. Mas também sei que, sei lá, que as pessoas podem não gostar. A minha convicção sobre esse álbum é de que eu me orgulho dele e vou me orgulhar daqui a 20 anos. Fazendo sucesso ou não, é o que tenho a dizer ao mundo.
De certa forma, a gaúcha transforma em suas próprias palavras, entoadas em voz grave e aveludada, as mesmas ideias que leva tatuadas no braço. São versos da jovem poeta australiana Erin Hanson:
“E se eu cair? Oh, minha querida e se você voar?”.
Há de voar, Anaadi.