Ana Luiza na cerimônia do Emmy Internacional (acima), em novembro de 2015, com Jorge Furtado, Fernanda Montenegro e Nora Goulart | AFP Bastidores do filme "Antes que o Mundo Acabe" Como assistente de direção da minissérie “Luna Caliente”, em 1998, exibida pela Globo :: No sorriso da irmã MARIA DO CARMO, imigrantes encontraram conforto e cidadania
Por Daniel Feix
É recorrente a imagem do diretor que gosta de criar tensão no set de filmagens, com o objetivo de pressionar os atores para tirar deles as melhores performances possíveis. A imagem do encenador tirano é anterior à própria existência do cinema – e segue tendo seus adeptos no século 21, no teatro e, talvez ainda mais, nas produções audiovisuais.
Para entender o método de trabalho e as escolhas de Ana Luiza Azevedo, realizadora porto-alegrense que já venceu o Emmy Internacional e levou o cinema gaúcho ao Festival de Cannes, o maior do mundo, é preciso pensar no oposto disso.
– A pressão me imobiliza – ela explica, com a fala pausada e tranquila que lhe é característica. – Acredito que o ambiente divertido é mais favorável à criatividade.
Ana, 56 anos, vive ao lado do montador e diretor Giba Assis Brasil, com quem forma um dos dois casais à frente da Casa de Cinema de Porto Alegre. O outro reúne o diretor e roteirista Jorge Furtado e a produtora Nora Goulart. Até não muito tempo atrás, havia um terceiro casal – o diretor Carlos Gerbase e a produtora Luciana Tomasi.
Se você leu atentamente, percebeu que, das três mulheres citadas, Ana é a única que dirige. Ela integra, de fato, uma minoria, formada pelas cineastas que se aventuram a comandar os sets de filmagem – escolha que, tendo em vista as experiências recentes vivenciadas por Anna Muylaert, diretora de Que Horas Ela Volta? (2015), vem carregada de desafios não incluídos no pacote quando se trata de diretores homens.
Recordemos, especialmente se você achou esta última frase exagerada, afinal, cinema é ambiente de criação artística, libertário por natureza: em um debate em Recife realizado em agosto passado, Anna Muylaert e também a atriz Regina Casé foram vítimas de desrespeito por parte dos cineastas Cláudio Assis e Lírio Ferreira – dois homens de carreira consolidada, responsáveis por obras perfeitamente adequadas a adjetivos como “libertárias”. Consequência direta do episódio, o machismo se tornou pauta da hora, e a realizadora paulista, questionada sobre o assunto, se saiu com esta:
– Se eu fosse homem, acho que seria diferente (sobre o impulso que Que Horas Ela Volta? poderia dar em sua carreira). Parece que ninguém tem uma oferta de trabalho a me fazer. Uma mulher que faz sucesso numa área dominada por homens ainda é entendida como uma figura que pode ser perigosa.
Ana Luiza Azevedo afirma nunca ter vivido episódios semelhantes no ambiente de trabalho.
– Acho que é porque meus filmes ainda não tiveram tanta repercussão – diz, usando seu conhecido bom humor para dar leveza mesmo quando a discussão se dá em torno de temas pesados.
E ela tem razão. De fato, nem Suzana Amaral (de A Hora da Estrela), Laís Bodanzky (Bicho de Sete Cabeças) ou Ana Carolina (Mar de Rosas) haviam obtido destaque midiático como este que coube à autora de Que Horas Ela Volta?. Agora, se há diretoras brasileiras no caminho de obtê-lo, Ana Luiza Azevedo está entre elas.
O Emmy Internacional de melhor comédia recebido no ano passado pela produção de TV Doce de Mãe (2014) talvez seja sua láurea mais importante, mas ela vem sendo sistematicamente reconhecida nos principais festivais de cinema do país desde quando deu seu primeiro, com o perdão pelo clichê, voo solo na direção, com o documentário de média-metragem Ventre Livre (1994) – antes, codirigira com Jorge Furtado o curta Barbosa (1988).
Premiado em Brasília e Gramado, Ventre Livre fala de aborto com um humanismo nem sempre bem compreendido em uma sociedade conservadora e extremamente apegada a valores religiosos – o que só confirma a urgência do tema. No filme seguinte, o histórico curta-metragem ficcional Três Minutos (1999), Ana voltou a abordar a condição da mulher na sociedade – com uma narrativa mais enxuta e de maneira, vamos definir assim, mais delicada. Como se começasse a burilar um estilo próprio.
– Ventre Livre foi uma espécie de laboratório para Três Minutos. Frases do roteiro de Três Minutos foram tiradas dos depoimentos de Ventre Livre – ela lembra.
O curta foi ao Festival de Cannes – a partir de uma carta-convite assinada por Gilles Jacob, o todo-poderoso do evento – e ajudou a afirmar o nome de Ana como um dos mais proeminentes do cinema local à época. Mas a cineasta, que ainda realizaria Dona Cristina Perdeu a Memória (2002) antes de estrear no longa-metragem (com Antes que o Mundo Acabe, em 2009), cumpriria com calma outras etapas até se tornar “somente” diretora – ela seguiu fazendo assistência de direção para autores como Carlos Gerbase (em Tolerância e Sal de Prata) e o próprio Furtado (O Homem que Copiava, Meu Tio Matou um Cara) até o início da década de 2010.
– Acredito em cinema feito coletivamente, a partir da união de competências de todas as funções técnicas – comenta, lembrando que os roteiros da Casa de Cinema invariavelmente são assinados por mais de um profissional. – Para mim, é fundamental apresentar o projeto a cada técnico envolvido e, assim, conseguir desenvolvê-lo em sua respectiva área. O Fiapo (Barth), por exemplo: quando conversamos, explico o que pretendo e percebo o quanto ele aprofunda minhas ideias no que diz respeito à direção de arte.
Assim também é com Rô Cortinhas, figurinista, e Alex Sernambi, diretor de fotografia, entre outros: Ana gosta, além de criar junto a seus parceiros, voltar a trabalhar com eles a cada novo projeto. O que não quer dizer que ela tenha o que se convencionou chamar de ator-fetiche. Pedro Tergolina foi um dos raros intérpretes a atuar em papéis centrais em mais de um de seus filmes.
– Ana Luiza é praticamente minha mãe – descreve o ator de 24 anos, natural de Caxias do Sul que hoje vive no Rio. – E não estou falando só de cinema. No set de Dona Cristina..., ela demonstrava preocupação quanto à minha formação, queria saber da escola e tudo mais (ele tinha nove anos à época). Em Antes que o Mundo Acabe, eu já era mais crescido. Mas a maneira atenciosa como ela trabalha permaneceu. É única.
Cinema para transformar
Donna conversou com parceiros habituais da diretora, que fizeram ecoar a ideia de que sua aposta é no estabelecimento de um ambiente de trabalho marcado pelo carinho e a confiança.
– Parte do pessoal de fora do Rio Grande do Sul que atuou em Doce de Mãe chegou para as filmagens conhecendo mais intimamente o Jorge Furtado (com quem Ana codirigiu a série). Mas, aos poucos, todos foram seduzidos pela metodologia dela. Isso era bem perceptível. Ana tem um olhar muito perspicaz sobre cada cena, e ao mesmo tempo uma generosidade genuína, que não existe apenas da boca para fora. Musa total – define Janaína Fischer, que já foi sua assistente (em Antes que o Mundo Acabe) e trabalha em projetos da Casa de Cinema desde 2003.
Ana constitui um daqueles casos em que as ideias correspondem à prática. Seus filmes, em geral, abordam as relações familiares, a infância, a juventude, a velhice e, consequência natural disso, os encontros geracionais. Importante aqui usar o termo encontros, e não choques, ou conflitos: suas histórias falam muito sobre o crescimento – não importa a idade – a partir da compreensão do contexto social e da convivência com o outro. É, sob certo aspecto, um cinema da tolerância – embora a definição seja limitada; não dê conta da complexidade do que costuma ser abordado.
É curioso observar que Ana já trabalhava com crianças antes de pensar em fazer cinema e televisão: ex-estudante de Arquitetura, nos anos 1980 ela era uma acadêmica de Artes Visuais com um projeto voltado à formação quando foi convidada a fazer um programa infantil na TVE – onde conheceu a turma que fundaria aquela que talvez seja a mais destacada produtora audiovisual gaúcha. Faz sentido, portanto, dizer que chegou ao cinema pela TV e, depois, voltaria à TV (onde tem realizado a maioria de seus mais recentes projetos) em razão do trabalho no cinema.
Outra curiosidade: sua filha Teresa Assis Brasil, 23 anos (Giba e Ana têm ainda Antônio, 25), acabou de se formar em Cinema, e um de seus primeiros projetos na área é a realização de um curso direcionado às crianças. Filme que se repete, de mãe para filha, e que vem a confirmar um status que Ana atingiu motivando a entrega do Prêmio Donna Mulheres que Inspiram.
– Ana é muito inspiradora – afirma Teresa. – Sempre tive em mente uma profissão com a qual houvesse a possibilidade de transformar a realidade. Os filmes dela me ajudaram a perceber que o cinema pode ter isso.
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