Maria do Carmo comanda o Centro de Atendimento ao Migrante de Caxias do Sul desde 2010 (Foto: Roni Rigon, BD, 24/7/2014) Da colunista de Zero Hora, Cláudia Laitano, Maria do Carmo recebe o Prêmio Donna Mulheres que Inspiram (Foto: Adriana Franciosi) :: Responsável por cunhar o termo “homoafetividade”, a advogada MARIA BERENICE DIAS celebra as vitórias em prol de minorias:: A esgrimista MÔNICA SANTOS transformou sua vida após se tornar cadeirante via GIPHY
No dia seguinte à cerimônia em que recebeu o Prêmio Donna Mulheres que Inspiram, a irmã Maria do Carmo dos Santos Gonçalves, 41 anos, estava de volta a Caxias do Sul. Acompanhava quatro imigrantes – três haitianos e um senegalês – em visita a uma escolinha de Educação Infantil. Eles receberiam uma doação e falariam sobre os seus países aos pequenos.
– Quem sabe onde fica o Haiti? – perguntava a professora da turma, pescoçando em busca de algum bracinho levantado.
Conforme os palestrantes altos, negros, sorridentes e eloquentes falavam, Maria do Carmo – de canto na sala de aula – percebia os sinais. Os olhos bem arregalados da menina. O beiço meio tremido do gurizinho. Outro esfregava rápido o canto do olho, antes que a lágrima fosse flagrada. A irmã achou por bem perguntar em voz alta:
– E quem aqui está com medo deles?
Dois ou três bracinhos subiram apressados. Em seguida, outros. O sentimento era meio generalizado, veja só. A professora ajudou a contornar a situação. Perguntou quem não estava com medo e convocou os corajosos a escolher um imigrante para dar um abraço. Tudo terminou bem, e Maria do Carmo agora mostra o encerramento do encontro na tela do celular: em homenagem aos estrangeiros, os pitoquinhos loiros cantavam uma versão aportuguesada de Heal the World, de Michael Jackson, daquele jeito: uns cantando a plenos pulmões, outros parados, cada um fazendo a coreografia para um lado diferente.
No estúdio fotográfico onde seria retratada para a capa da revista Donna, Maria do Carmo se fina de dar risada com a fofura do vídeo.
– Ora, é natural ter medo do que é diferente, né? Mas cada vez que acontece uma dessas, a gente percebe uma nova faceta a ser trabalhada – comenta a irmã.
À frente do Centro de Atendimento ao Migrante (CAM) de Caxias do Sul desde 2010, Maria do Carmo não tinha ideia do desafio que a esperava. Fundado em 1984 pela congregação das Irmãs Scalabrinianas, o centro atendia majoritariamente gaúchos de outros municípios em busca de residência temporária enquanto procuravam emprego. Em questão de meses, a combinação de fatores como o terremoto que devastou o Haiti em 12 de janeiro de 2010 e o cenário econômico brasileiro em maré ainda favorável fez a região receber imigrantes na casa das dezenas por dia. A estimativa recente é de que mais de 3 mil estrangeiros vivam em Caxias do Sul, a maior parte natural do Haiti, Senegal e Gana.
– Nunca me imaginei frente a frente com pessoas diferentes em um nível tão profundo.
Diferenças que vão muito além da língua e da raça. Maria do Carmo exemplifica contando a história de uma das primeiras casas de repouso montada pelo CAM, habitada por uma maioria de imigrantes africanos.
– Antes de receber as pessoas, nos preocupamos em conseguir uma mesa, toalha, talheres, xícaras. Na primeira vez em que coloquei os pés lá, encontrei o pessoal sentado no chão, em volta de uma bacia improvisada cheia de arroz, comendo com as mãos – recorda.
O desafio de integrar culturas
Ao longo dos anos, o trabalho de Maria do Carmo mudou bastante. No início, beirava o emergencial: conseguir moradia e mantimentos para gente que chegava à Serra passando frio e fome, sem falar o idioma. Com o tempo, evoluiu para uma ação institucional: em meio ao jogo de empurra dos governos, assegurar documentação e serviços públicos. Enquanto isso, passar noções de cidadania e direitos trabalhistas. Hoje, o principal desafio é a integração de diferentes culturas à cultura local. Evitar que aconteça como na Europa, em que estrangeiros formaram guetos em constante tensão com os demais habitantes.
Embora o fluxo migratório tenha diminuído com a crise econômica, o fenômeno da imigração à Serra chegou a um estágio em que as pessoas estão trazendo suas famílias, e aqui permanecerão. Maria do Carmo agora percebe na atmosfera úmida de Caxias uma certa preocupação com a “pureza”. Há quem diga, conta ela, que prefere não passear mais pela Avenida Julio de Castilhos, ou tomar chimarrão na Praça Dante Alighieri, pois o Centro está tomado de estrangeiros.
– Uma coisa é você encontrar um senagalês te atendendo no posto de gasolina. Um ganês servindo as mesas de um restaurante. As pessoas pensam: “Legal, o pessoal está trabalhando. Que bacana”. Mas e quando encontram ele, por exemplo, na casa de câmbio do Zaffari? Aí já pensam: “Hmmm, não sei não. Acho que já é muita gente” – exemplifica a irmã.
O desafio é integrar gente como o haitiano Jean Fritz St Fleur, 33 anos, técnico em refrigeração que montou uma loja para venda e reparo de eletrodomésticos no bairro Rio Branco. O nome do estabelecimento, Bino Fritz, ele bolou para ser melhor aceito pela clientela. Na cidade junto ao pai e o irmão desde 2013, Jean fala sobre episódios de racismo que nem sempre são conscientes para quem pratica.
– Em Caxias, são pessoas carinhosas, mas precisam te conhecer. Tem pessoa que fala que não é (racista), mas que trata o negro como burro. Que precisa explicar muitas vezes, que pode passar para trás. Outro problema é a lei. Quando é um estrangeiro, tem quem queira fazer sua própria Justiça – explica o haitiano, em português claro e pausado.
Jean conheceu Maria do Carmo em outubro de 2015, após um episódio de violência em Caxias do Sul. A irmã se envolveu em uma passeata em protesto pela morte de Jean Wesly Moriseme, haitiano com problemas mentais que, durante um surto, foi baleado na perna por um policial. O tiro acertou uma artéria do rapaz e foi fatal. Em fevereiro, novo protesto foi organizado depois que o suspeito de assassinar o senegalês Cheikh Tidiane a tiros em Galópolis foi libertado sob fiança. No mês seguinte, ele seria indiciado por homicídio duplamente qualificado.
– É importante não deixar que episódios assim fiquem sem solução. Está em jogo o sentimento dos que ficam – explica a irmã.
No segundo protesto, Maria do Carmo teve companhia de Abdou Lahat Ndiaye, 27 anos, presidente da Associação de Senegaleses Imigantes em Caxias do Sul. Billy, como é conhecido, gasta todas as interjeições que conhece em português para elogiar a irmã, que ele conheceu quando um grupo de 11 senegaleses procurou a igreja para reclamar do frio. Hoje, Billy tem uma loja que vende produtos africanos e realiza ligações internacionais.
– Nossa, cara! Nossa! O que mais me impressiona é que nunca vi ela pedir nada em troca. Imagina! Uma brasileira que nem é da nossa religião. Quem vai me dizer que Deus não vai pagar a irmã Maria? – declara Billy, muçulmano. – Tem quem já saia do Senegal com o nome da irmã Maria anotado, porque ela vai ajudar.
Saiba mais
Outra parte pouco tangível, mas estressante, do trabalho de Maria do Carmo é desmentir os boatos que insistem em circular em volta dos imigrantes. Sem perder o bom humor, ela lista alguns dos seus preferidos: o do senegalês que teria barbarizado uma frequentadora da boate Susinight, ou o do ganês com ebola que estaria em uma ala isolada do Hospital Pompeia. Tudo parte de um folclore que ela cansa de desmentir a quem liga para o CAM para fazer “denúncias”.
Maria do Carmo é um grande papo. É capaz de passar horas falando sobre a imigração no Brasil – “Nas últimas décadas, o brasileiro se descobriu bairrista” –, sobre o Papa Francisco – “Você viu que legal ele fazer o Lava-pés em um centro de refugiados?”, sobre os mais diversos assuntos, exceto sobre si mesma.
Para descobrir que Maria do Carmo já teve lá suas lutas pessoais é preciso entrevistar a mãe dela, Eloá Santos, de 77 anos. É ela quem conta que a filha passou por um grave acidente de trânsito em 1998, em Farroupilha. Um carro atingiu a traseira da minivan em que ela e outras oito freiras viajavam. Uma delas faleceu. Seis anos depois, Maria do Carmo superou um problema de saúde: um cisto do tamanho de uma laranja, que lhe custou parte do pâncreas e do baço.
– A Maria lutou desde o dia que nasceu – conta a mãe.
A frase é literal. Na hora do parto, Rio Grande passava por um blecaute. À meia-luz, virada dentro do ventre materno, Maria do Carmo teve de ser puxada para fora. A inépcia do médico deixou a menina com uma sequela no movimento de um dos braços por toda a vida. O bebê sofreu tanto para vir ao mundo que a irmã mais velha perguntou à mãe por que a cabeça da irmãzinha tinha formato de ovo.
A mesma irmã, Paulina, cinco anos mais velha, foi a inspiração para Maria do Carmo seguir a vida religiosa. Era o “chaveirinho” da irmã nas pregações. Mas enquanto a primogênita passou 17 anos reclusa em um convento, a irmã Maria conciliou a vida religiosa a viagens e estudos. Além de Rio Grande e Caxias, morou em Porto Alegre, Fortaleza e Brasília. Conheceu França, Bélgica e Itália. Formou-se em filosofia pela UCS, é mestre e doutoranda em Ciências Sociais pela PUCRS.
Talvez por isso, o trabalho de Maria do Carmo encontre uma definição precisa não em versículos da Bíblia, mas na teoria de um dos seus fisósofos preferidos, o francês Emmanuel Levinas: “É no face a face humano que se irrompe todo sentido. Diante do rosto do outro, o sujeito se descobre responsável, e lhe vem à ideia o infinito.” Sorte dos outros ter Maria do Carmo.
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