Das timelines às mesas de bar, o feminismo nunca virou pauta de tantas discussões. Foi a palavra do ano de 2017 segundo o dicionário norte-americano Merriam-Webster, que elege anualmente o termo mais buscado em sua plataforma online. No Google, a procura por feminismo cresceu 200% entre o final de 2015 e outubro de 2017. No embalo, também aumentou a busca por expressões como “empoderamento feminino” – quatro vezes maior em 2017 na comparação com 2012.
Todo esse interesse tem explicação: nunca se falou tanto nos direitos das mulheres. Temas como igualdade salarial, aborto, violência doméstica e assédio ganharam força com hashtags como #MeToo e #MeuPrimeiroAssédio e movimentaram debates e denúncias mundo afora – a começar por Hollywood. Em seriados, na música pop, no funk, em novas levas de pesquisas acadêmicas, nos jornais... O feminismo está por toda parte.
Mas nem tudo são flores na chamada Primavera das Mulheres: ao mesmo tempo em que vivemos um momento histórico de debates e reivindicações, percebe-se uma verdadeira aversão ao feminismo ganhando força. Basta observar os comentários nas reportagens e nas páginas do Facebook de grandes portais de notícias para entender. É comum deparar com termos pejorativos como “feminazi” sendo usados não somente por homens, mas por mulheres também. Não falta quem insista em repetir o velho estereótipo de que as feministas odeiam os homens ou se acham superiores a eles. E ainda há os que desqualificam as ideias das feministas criticando sua aparência (“feia”), sua sexualidade (“reclama porque é malcomida”) ou até as roupas que vestem (“masculinizadas”). Em resumo: feminismo, para muitos (e muitas), virou palavrão. E as feministas, por sua vez, acabaram associadas a uma imagem agressiva e briguenta, de quem faz “mimimi para tudo”.
Afinal, por que um movimento que pede igualdade de direitos ganhou uma fama tão ruim para tanta gente? Para Joanna Burigo, criadora da Casa da Mãe Joanna, projeto feminista de comunicação e educação sobre gênero, essa reação tem a ver com a resistência que os movimentos conduzidos por mulheres enfrentam na sociedade – desde sempre. Vem da época das sufragistas, que lutavam pelo direito das mulheres ao voto no século 19.
– Por mais que o feminismo não fosse um termo usado (na época das sufragistas), os cartuns antissufrágio são muito parecidos com os discursos antifeministas de hoje. Dizem que as sufragistas queriam inverter a ordem de poder e deixar os homens subjugados. Eram comuns cartuns que mostravam homens amarrados com corrente na mesa da cozinha, ou com três filhos dependurados no pescoço, exatamente como as mulheres eram naquele momento. Usavam esse tipo de imagem para desqualificar a luta – explica Joanna, que estudou feminismo no mestrado em Gênero, Mídia e Cultura pela London School of Economics.
– As sufragistas, assim como as feministas, nunca quiseram inverter a ordem de gênero, mas, sim, obter direitos e espaços de poder institucional sobre os nossos direitos.
Você talvez já tenha ouvido a história de uma grande queima de sutiãs em praça pública nos anos 1960. Causos como esse, que ganham fama de maneira equivocada, são lembrados por Joanna como exemplos que ajudam a criar nas pessoas uma imagem errada sobre o movimento.
A saber: naquele setembro de 1968, nem fogo houve. O que aconteceu na época foi um protesto de cerca de 400 mulheres nas proximidades do teatro onde seria realizado o concurso de beleza Miss América. Elas jogaram, em um barril, não somente sutiãs, mas também outros apetrechos como cílios postiços, batom e salto alto, símbolos do padrão estético que se espera da mulher. Mas o que saiu na imprensa – e vive no imaginário de muitas de nós – é uma cena bem diferente. Isso ajuda a explicar o ranço que o movimento enfrenta hoje, já que a primeira coisa sobre o feminismo que se costuma ouvir são recortes de acontecimentos, muitas vezes deturpados. E não uma explicação real do que o feminismo reivindica: igualdade de direitos.
– Muito desse ranço que as pessoas têm é porque o primeiro contato delas com o feminismo é deliberadamente antifeminista – diz Joanna. – Se você não conhece um projeto ou uma ideia e a primeira coisa que te falam é que se trata de um bando de mulheres mal-amadas, peludas e raivosas... E você vai a uma marcha e realmente encontra mulheres peludas e raivosas, e elas têm toda a razão de ter raiva e muitas não estão nem aí para a depilação, vai achar que aquela galera estava certa.
Desde que criou o canal no YouTube Você é Feminista e Não Sabe, a jornalista paulista Angélica Kalil acostumou-se a lidar com os olhares de reprovação a cada vez que puxa assunto sobre feminismo. Já ouviu, inclusive, que deveria ter mudado o nome do seu canal – para tirar o termo feminista, claro.
– Até com pessoas mais progressistas, você vai falar de feminismo e ouve: “De novo esse assunto?”. A recusa ao tema é porque mexe com muitas questões que são incômodas de mexer, para ambos os sexos – argumenta Angélica. – Ao mesmo tempo, cada vez mais mulheres e homens simpatizantes estão se identificando, apesar de tudo o que se enfrenta quando se coloca como feminista. É uma libertação.
Eu, feminista?
Se levarmos em conta a má fama que o feminismo carrega, seja por preconceito ou desconhecimento, não é de surpreender que exista um temor em relação ao rótulo “feminista”. Seguem firmes os estereótipos de que as mulheres que defendem a causa são, necessariamente, lésbicas, não se depilam e odeiam homens.
Quando, na verdade, para ser feminista, você precisa, fundamentalmente, acreditar que homens e mulheres deveriam ter os mesmos direitos e ser tratados de forma igualitária. Ser feminista não está atrelado à orientação sexual. Nem à forma de se vestir. E também não supõe ódio aos homens – esse é o conceito do termo “femismo”, que não é sinônimo de feminismo. Feministas podem ou não ser casadas (com homens ou com mulheres), podem ou não ter filhos (e lutam justamente para ter essa escolha respeitada), podem ou não ser exatamente como você, sua mãe, sua melhor amiga, sua colega de trabalho ou qualquer outra.
Aos 27 anos, Babi Souza, criadora do movimento Vamos Juntas?, é casada e mãe de Luís Otávio, de quase dois meses. E, desde 2015, virou uma das vozes nacionais do feminismo com o movimento que incentiva mulheres a se unirem para se proteger da violência nas ruas. Babi percebe, na prática, como o termo ainda é incompreendido: todos os dias, recebe comentários e mensagens de mulheres que dizem não acreditar no feminismo, mas que estão entre os mais de 460 mil seguidores de sua página no Facebook:
– Por um lado, fico triste por perceber que as mulheres ainda não sabem o que é o feminismo, mas, por outro, fico feliz, porque quer dizer que a ideia feminista já está dentro delas.
Reconhecer-se feminista, acredita a ativista, ainda é visto como um obstáculo por conta da má imagem que paira na cabeça de muita gente:
– Muitas mulheres já sabem o que é ser feminista, mas, por não estarem seguras de que as outras pessoas também sabem, deixam de se intitular dessa forma. Isso aconteceu comigo na adolescência e quando passei a ser reconhecida como feminista por veículos de comunicação. Tinha medo de que as pessoas não soubessem o que é ser feminista, que tivessem uma ideia equivocada sobre o meu trabalho. Mas foi aí que percebi que era justamente por isso que deveria falar, explicar e dar mais voz ainda ao movimento Vamos Juntas? e ao feminismo, pois as mulheres precisavam entender o que é para não refutarem uma ideia tão libertadora.
Idealizadora da ONG Empoderamento da Mulher, a cyberativista e empreendedora Estela Rocha já ouviu algumas vezes que “nem parece que é feminista”. Antes da sessão de fotos que ilustra a página ao lado, fez questão de abrir a recheada nécessaire de maquiagem para disfarçar as olheiras que apareciam após uma noite maldormida. A ex-modelo é vaidosa, já descoloriu os cabelos e desfilou por aí com fios pintados de cor-de-rosa. E se identifica há sete anos como feminista.
– Para muitos, ou você é uma guria legal, ou é feminista. É uma guria que aceita tudo, ou é feminista. (Rola até o papo de alguém ser) muito bonita para ser feminista. O ser humano busca essa dicotomia. Acho que ser feminista virou um título do melhor ou do pior – analisa Estela. – Mas, quando a gente fala de feminismo, fala de direitos, de respeito e de aceitação. Não é um termo para chamar a atenção.
Para além dos estereótipos que as feministas carregam, o medo de assumir o “título” também encontra corpo na misoginia – o ódio às mulheres por simplesmente serem mulheres. É o que acredita a filósofa Marcia Tiburi, autora do livro Feminismo em Comum: Para Todas, Todes e Todos. Falar mal de mulheres, sobretudo as que adquirem consciência de como o machismo afeta sua vida, é, diz ela, uma estratégia a fim de evitar a libertação que o feminismo propõe. E, claro, a perda de privilégios para os homens.
– O feminismo, como discurso e prática, causa mal-estar porque lembra da violência que as mulheres sofrem, e denuncia isso. Fingir que não existem problemas é um caminho para que os problemas continuem sem solução.
Marcia Tiburi faz uma constatação dolorosa, mas verdadeira: ser feminista não torna, necessariamente, você mais feliz. O feminismo ajuda a tomar consciência sobre como o machismo atinge nosso dia a dia: da roupa que usamos para não sofrer com assédio no ônibus ao contracheque com um salário menor do que o do colega homem. E tem a ver, também, com libertação, que nem sempre é um caminho fácil.
– Uma mulher não gosta do feminismo porque, ao ver feministas falando, ela se identifica com as questões que preferia que ficassem apagadas, para que não tivesse que entrar em um processo de consciência acerca da vida violenta e infeliz que vive.
Joanna Burigo é categórica: se por um lado o feminismo dá instrumentos para ajudar a mudar a sua vida, por outro é, sim, difícil se autointitular feminista.
– Você está entrando em conflito com um poder muito essencial que é o masculino. Bradar feminismo boca a fora é uma coisa, agora tentar aplicar o feminismo em uma relação com seu pai, seu namorado ou seu irmão é muito difícil, porque a retaliação é muito forte. Muitas mulheres não são feministas porque cansa, dá medo, preguiça, raiva. Não é um posicionamento fácil de se manter. Exige convicção, centramento, paciência. Se o senso comum é machista, para conversar com uma pessoa sobre um assunto que é polêmico e que contradiz o senso comum você precisa estar muito preparada. Nem todo mundo tem essa disposição.
Afinal, o que é feminismo?
Entre as muitas respostas que se encontra ao buscar a definição de feminismo, uma das mais plurais – e a preferida de Joanna Burigo – é a da ativista norte-americana Marie Shear, de 1986: “Feminismo é a ideia radical de que mulheres são gente”.
– Quando falo de feminismo, muita gente entende que eu imagino que as mulheres vivem em um universo de superioridade moral. Como disse (a comediante Hannah Gadsby no show) Nanette, as mulheres são tão corruptíveis pelo poder quanto os homens, e eles não detêm o monopólio da condição humana. Mulheres são gente. Mas vivemos em uma sociedade em que as mulheres não são tratadas 100% como gente como os homens são.
A célebre frase de Marie Shear também é a citação preferida de Babi Souza para falar sobre o feminismo nas palestras que ministra pelo Brasil:
– Feminismo é simplesmente um movimento que quer considerar a mulher como um ser humano com direitos e necessidades que merecem ser atendidas.
Na visão de Marcia Tiburi, o movimento traz ganhos não apenas para as mulheres, mas a todos que se propõem enxergar o quanto o machismo é nocivo. Inclusive no que se convenciona ser coisa de menino, como não chorar em público, ou de menina, que “só pode” brincar com bonecas.
– O feminismo é bom para homens, para mulheres, para pessoas trans. Feminismo discute gênero, classe, raça, sexualidade. O feminismo não é uma ideologia, é uma luta, uma desconstrução, uma análise. E é uma crítica, evidentemente, de uma sociedade patriarcal que faz mal a homens e mulheres. A sociedade patriarcal coloca os homens em uma posição de privilégio, dá a eles uma perspectiva subjetiva bastante precária.
A cada entrevistada no canal Você É Feminista e Não Sabe, Angélica Kalil costuma repetir uma pergunta: “Afinal, o que você sentiu quando começou a compreender o feminismo?”. Como resposta, já ouviu que era como “tirar um véu do rosto”. Ou como se descobrisse um novo continente. E até comparações com um míope quando coloca o óculos pela primeira vez. Para ela, é como se subisse em um muro e pudesse ver os dois lados da mesma sociedade:
– O feminismo liberta, traz a verdade e dá ferramentas para que você entenda melhor quem é. Mostra também o quanto o patriarcado dificulta a vida. Já ouvi de uma mulher que o feminismo atrapalha, porque você começa a se questionar. Mas o que atrapalha não é o feminismo, é o machismo.
Para Estela Rocha, um dos caminhos para explicar o movimento é ajudar a mulher a entender o que lhe é negado na vida por conta de seu gênero:
– Feminismo é quando a mulher reconhece que tem direitos no mundo. Costumo explicar quais são os direitos que ela tem e o que não consegue acessar por conta do machismo e do sexismo.
E a parte mais bonita desse movimento? Estela responde com uma palavra que nos acostumamos a ouvir: o empoderamento. Mesmo que o termo tenha se popularizado e se desgastado – e até sido incorporado por marcas que queriam pegar carona na primavera das mulheres –, a cyberativista nos convida a enxergar o real significado de se empoderar:
– O feminismo é um processo de empoderamento. Não são as pessoas que empoderam você, é o conhecimento que o feminismo traz. O empoderamento não é individual, é social. Quando a mulher se empodera, se emancipa, e isso é algo que somente ela pode fazer por ela mesma.