
"A idade da tragédia só pode acabar por uma revolta da frivolidade." Esta frase do livro A Imortalidade, do escritor tcheco Milan Kundera, recentemente falecido, ajuda a ilustrar o que sinto ao me render a pequenas coisas que dão graça à vida, mesmo não sendo essenciais à sobrevivência. Essencial é água, alimento, teto, roupas e energia elétrica. Concordo.
E discordo ao mesmo tempo.
A maioria do povo não tem nem o básico, uma realidade injusta e intolerável. Ainda assim, até quem passa por apertos reconhece o poder de uma flor colhida em um jardim, enfiada em uma latinha com água e colocada no parapeito da janela. Pobres, remediados e ricos, cada qual em sua condição, sobrevivem também da sutil presença da beleza.
Não posso passar por uma floricultura sem levar para casa um molho de astromélias vermelhas, é o que basta para transformar a sala num salão. Sobre o balcão da cozinha deixo sempre papel e lápis para as anotações do que falta, há sempre uma lista por fazer. O toque de frescura: o bloco tem folhas brancas delicadamente decoradas. O pano de prato, coitado, sempre relegado a trapo, foi promovido: psicodélico, parece uma camiseta, e assim enxugo a bancada da pia e seco os copos com menos ranço e mais vontade.
Dentro das gavetas, os guardanapos de papel são quadriculados e os talheres têm cabos de resina da cor do mar. Em cima da mesa da copa, exponho jarros decorativos e pequenas esculturas do Nordeste, assim como uma garrafa tailandesa e um ramo de lavanda — artificial, mas ninguém diz. Pendurados na parede, o relógio que fica de olho no forno e uma gravura abstrata. É uma cozinha, mas cozinhas não precisam ser triviais.
Já nem conto quantas cadernetas e agendas repousam lado a lado sobre minha escrivaninha, disputando quem tem a capa mais digna de estar no Louvre ou em galerias de vanguarda. A miniatura de uma Remington fica em cima da pilha de livros e me ajuda a lembrar do tempo em que escrever era tão barulhento por fora quanto é por dentro.
As almofadas sobre os sofás já mereceram uma crônica só para elas, anos atrás. Asiladas aqui em casa, vieram de todos os continentes — capas não pesam na mala.
No banheiro, sabonetes e hidratantes comprados por causa da embalagem. O jazz toca por toda parte, quarto, sala, varanda, e no inverno acendo velas e a lareira, porque o fogo também veste.
Se abrirem meu armário, não encontrarão bolsas de luxo, sapatos de marca, vestidos gasosos — nunca tenho roupa para sair, só para ficar. Da porta da rua para fora, invisto em passagens, enquanto as sobras do orçamento são dedicadas ao lado de dentro, lar com alma, rotina frívola com hora da sesta e onde a paz é coloquial.