Bastou apenas a hora e meia do show do Caetano, onde ele festejou seus 80 anos ao lado dos filhos e de sua irmã Bethânia, para eu voltar a confiar no país. Em meio à vulgaridade vigente, ele irradiou esperança, acendeu uma luz. Nos WhatsApps e postagens nas redes, brasileiros emocionados celebraram não só o talento dos Veloso, mas o resgate do encantamento. Extra, extra! O Brasil sensível e culto ainda respira.
As palavras que me vêm à cabeça são perigosas, já que costumam descrever situações sentimentaloides, mas correrei o risco de abusar delas nesta página. Elas não podem continuar envergonhadas diante da estupidez que saiu do armário.
O que se viu, em 90 minutos, foi o verdadeiro conceito de família, e não uma gangue com o mesmo sobrenome. Pessoas unidas pela arte, transmitindo com limpidez os sons de sua terra mãe, a Bahia. Nossa ancestralidade representada por instrumentos, vozes e versos. E afeto explícito: abraços e beijos de quem sente admiração recíproca e não se enrijece diante de uma virilidade antiquada, em desuso.
Vimos memória, história, trajetória. O respeito pela passagem do tempo, por experiências, aprendizados e parcerias. A construção de uma carreira sólida, a serviço da poesia e de uma sonoridade quase silenciosa, partilhada com as gerações seguintes, que por sua vez trazem suas próprias referências, estabelecendo a troca fundamental que faz a música avançar, a vida evoluir.
Vimos a simplicidade refinada. O popular e o clássico costurados. A beleza de falar sobre nossa humanidade de uma forma que comove, sem jamais soar banal. A elegância do pensamento ilimitado e de um comportamento que é brejeiro e universal na mesma medida. A transmissão de um legado. Nada é pra já, tudo é pra sempre.
Vimos uma afinação que vai muito além dos acordes e do tom de voz. É alinhamento com o momento presente. Consciência e responsabilidade como cidadão social. Busca pelo novo, sem abdicar do sublime.
E chegamos à espiritualidade, que pode ser ainda mais ampla do que a religião, e que transpassou palco e plateia. Espiritualidade é comunhão entre seres desiguais. Tentativa de purificar o que em nós é angústia, dor, ressentimento, procurando transformar nossas imperfeições em sabedoria para lidar com as dificuldades. É equilibrar as naturezas interna e externa. Abertura e generosidade, em vez de julgamento. Sim, bem trabalhoso, mas torna-se possível quando, em vez de reduzir “Deus acima de tudo” a um slogan, nos comprometemos com o outro, que está ao lado de nós.
Foi um brasileiro de 80 anos que me despertou essas reflexões, ao presentear o país com uma rara noite de paz. Já os que acham que cultura não serve pra nada, tiveram mais uma noite qualquer.