Comover-se com a destruição da casa de um escritor parece uma reação elitista, uma vez que a casa de um comerciante ou a casa de uma costureira podem ter o mesmo valor emocional, e têm. Casas são refúgios sagrados. Todos nós, não importa a profissão, criamos nossa história de vida entre quatro paredes.
Mas tento traduzir aqui a peculiaridade da situação. Escritores são filhos da solidão. Não conseguem realizar seu trabalho sem ferramentas imateriais como a quietude, as lembranças, a contemplação do universo de um ponto de vista distanciado.
É dentro de sua casa que escritores encontram a si mesmos, profundamente. A casa nutre seus sentimentos e os preserva dos ruídos, das violências, das interferências que tanto dispersam a imaginação. A casa não apenas protege, mas se confunde com o próprio escritor. É poderosa na evocação daquilo que será transformado em texto. É preciso que o escritor se feche em si mesmo para só então abrir-se em palavras, frases, livros.
Isso tudo soa romântico e fora de moda, eu sei. Escritores hoje anotam suas ideias no celular, durante o trajeto do metrô. Escrevem em computadores, dentro de imóveis alugados, apertados, sem um pátio ou um lago à vista que capture o olhar. Sem nenhuma paisagem que ofereça a eles a beleza e a calma necessárias para aprimorar a reflexão, escutar sua voz interna. Escritores são interrompidos de 10 em 10 minutos pelos sinais de WhatsApp, pelas entradas de mensagens e chamadas de vídeo. Se desconcentram com o barulho do trânsito, das betoneiras, da obra no andar de cima. São escritores de apartamento.
Ainda assim, a solidão e o silêncio continuam sendo a matéria-prima vital para a realização da literatura. Se hoje não conseguimos ter o escritório dos sonhos – isolado de tudo – ao menos podemos contar com um abajur com luz cálida, uma mesa sólida que apoie cadernos e canetas para anotações, um vaso de flores que nos pareça um jardim.
Esses objetos aparentemente insignificantes disparam emoções pessoais, confortam a memória, dão significado à existência, que é a base de lançamento da criação. Quando tudo isso some, some junto a história que o escritor não contou: a história dele próprio, que fica entranhada nas janelas, portas, paredes.
Não sei os pormenores da demolição da casa de Caio Fernando Abreu. Em tudo há interesses diversos, verdades múltiplas. Mas compreendo bem a sensação de luto. Em vez de transformado em local de culto e inspiração, seu retiro pessoal abrigará agora, talvez, 12 andares, 50 apartamentos, 130 pessoas entrando e saindo com pressa pela garagem.
É a reprise da morte, não só a de Caio, mas a do refinamento, a da arte e a do espírito de um lugar – que falecem todos os dias.