Dormíamos cedo naquela época, tão cedo que às vezes já estávamos na cama quando o pai chegava do trabalho. Ele compensava com um show pirotécnico. Entrava no quarto e, com todas as luzes apagadas e seu cigarro aceso, fazia desenhos no ar com a brasa, deixando as duas crianças fascinadas com aqueles riscos de fogo no escuro. Depois acendia a luz, dava um beijo em cada filho e ia jantar com a mãe.
Na época, e lá se vai meio século, fumava-se muito, em qualquer lugar. Eu, com seis ou sete anos, não via a hora de ficar adulta para ter aquele fino rolo de tabaco entre os dedos, feito uma diva de Hollywood. Dei a primeira tragada aos 13 e quis a providência divina que eu detestasse o cheiro, o sabor, a fumaça. Ainda fumei um pouco, numa festa ou outra, achando que isso aceleraria a chegada da maturidade, mas só o que consegui foi passar por vexames que um dia talvez sejam conhecidos em uma biografia não autorizada. Aposentei o cigarro aos 15, no mesmo ano em que meu pai apagou sua última bagana.
Fumar é uma asneira gigante e aplaudo os bons resultados das campanhas antitabagistas, mas nem por isso desprezo os fumantes, inclusive mantenho cinzeiros na sala. Escapei do vício, mas não do deslumbre: anos atrás, numa lojinha de quinquilharias de Londres, encontrei uma canetinha branca do tamanho de um cigarro, mesma espessura, com a marcação ocre do filtro na ponta, imitação perfeita. Comprei e a “fumo” escondido não sei de quem, deve ser de mim mesma. O projeto de amadurecer, como se vê, não se concretizou.
Todo esse preâmbulo é para saudar o livro Risque Esta Palavra, da poeta Ana Martins Marques, excelente do início ao fim, e que fim: as últimas 20 páginas trazem poemas sobre a difícil despedida do cigarro, inimigo clássico de nossos pulmões e de nossa pele, mas o rei do suporte emocional. Está tudo ali, em seus belos versos: a fumaça que faz subir também nossos pensamentos, a desculpa perfeita para sair dos lugares (quantas vezes desejei fumar só para dizer “vou ali fora e já volto” e aí, nunca mais), a necessidade permanente de ocupar as mãos e a transgressão de amar algo que não serve para nada – a não ser nos matar. Mulheres fatais e homens valentes, sempre os protagonistas de sua publicidade.
Risco fósforos para acender velas e faço fogo na lareira, meu jeito de voltar ao tempo das cavernas sem correr risco de vida. Só tiro os olhos das chamas para ler poesia, enquanto fumo a canetinha (lápis também funciona). Aspiro ar puro e expiro ar puro, mantendo minha caixa torácica a salvo dessa encrenca toda, enquanto recordo os versos de outro grande poeta, Quintana, que dizia que fumar é uma maneira sutil e disfarçada de suspirar – e temos suspirado muito, profundamente.