Hoje me incomodo com o que não me incomodava antes. É um dos benefícios dos movimentos sociais: nos arrancam da bolha e nos jogam na vida real.
Outro dia escutei uma música antiga gravada por amigos meus. Antiga mesmo, fez sucesso há uns 30 anos. Não vou dar o serviço (nome, autores) porque estamos em fase de intensa patrulha e eles são muito talentosos e gente boa, não merecem agressões retroativas. Tenho certeza de que hoje eles não comporiam os dois versos simplórios que soavam engraçados, mas que agora doeram nos meus ouvidos - claro que estou falando sobre machismo.
Já soube de escritor que está reescrevendo o próprio livro, publicado há 20 anos, para relançá-lo numa versão politicamente correta. Se olharmos para trás, encontraremos inúmeras obras racistas, machistas e homofóbicas que não nos incomodavam tanto (Monteiro Lobato e suas alusões à tia Anastácia é o exemplo mais notório), mas que hoje não resistiriam a uma boa grita.
Eu mesma já escrevi bobagens que não repetiria (nada como cometer erros novos), porém acho inútil reescrever, regravar, revisar o que já foi publicado e divulgado. São registros de uma época que passou e que hoje têm ao menos esta serventia: incomodar. Quando a gente se sente incomodado com algo que antes não nos abalava, é sinal de que nos tornamos mais conscientes.
Falo por mim. Até alguns anos, não achava necessária a revitalização do movimento feminista, acreditava que o caminho da nossa independência e emancipação estava pavimentado e que o tempo trataria de ajustar o que faltasse. Equivocadíssima. Os anos 1950 e 60 foram cruciais para a mulher entrar no mercado de trabalho e conquistar sua liberdade sexual, mas foi só um (gigantesco) primeiro passo. Ainda temos chão a trilhar. Os altos índices de feminicídio não são mimimi, eles justificam os movimentos que vêm eclodindo no mundo todo.
Sob efeito do arrebatador vídeo das chilenas (El violador eres tú), recomendo dois livros: O Homem Infelizmente Tem que Acabar, da irônica e divertida Clara Corleone, que sem rodeios inaugura um novo normal, e Mulheres Empilhadas, da veterana Patricia Melo, que também coloca o dedo na ferida e mostra que não há exagero nem vitimismo quando o assunto é violência contra a mulher. Uma de forma leve, outra de forma dramática, ambas as leituras - agradáveis, modernas, sem nenhum ranço - nos guiam rumo a uma sociedade mais igualitária. Mostram como funciona o sutil rebaixamento da mulher, que acontece todo dia em detalhes quase imperceptíveis. E abrem nossos olhos, a fim de educarmos melhor nossas filhas e, principalmente, nossos filhos - os novos homens que estamos colocando no mundo.
Evoluir nem sempre significa deixar pra lá, se importar menos. Hoje me incomodo com o que não me incomodava antes. É um dos benefícios dos movimentos sociais: nos arrancam da bolha e nos jogam na vida real.