Tenho uma amiga de 59 anos, casada há uns cem, que me enviou um e-mail divertido dia desses, contando sobre uma viagem que ela e o marido fizeram muitos anos atrás para a Nova Caledônia, na Oceania. Recheado de detalhes, o relato falava das aventuras gastronômicas, radicais e sexuais da dupla, ambos fãs de paraísos longínquos. Depois de me contar poucas e boas, ela encerrou o e-mail assim: “Logicamente que isso foi no tempo da outra Elaine e do outro Claudio”. Rebatizei os dois para não expô-los.
Dizer que, anos atrás, ela era outra, assim como o marido, é uma maneira de atestar que eles eram mais audaciosos, mais apaixonados, mais entusiasmados – pra encurtar a história: mais jovens do que hoje. Será que isso basta para a gente se autodesignar como “outro”?
Meu lado conciliador acredita que nossas qualidades são as mesmas de sempre, que podemos ser entusiasmados em qualquer etapa da vida, basta motivação, só que meu lado realista salta à frente e grita: conversa! A gente muda mesmo. Pode dar bye bye a quem você foi. Quem é que consegue se manter igual?
Fiquei me perguntando se eu tenho uma outra Martha no meu passado, e não há dúvida, meritíssimo: aquela lá atrás já não parece tanto comigo. Ela foi eu, ela deu um excelente eu, mas abandonou esse corpo. Hoje nossas almas se cumprimentam apenas por educação, não mais por afinidade. Aquela lá, de antigamente, jamais trocaria os veraneios em Torres por uma expedição ao fim do mundo, onde fica Nova Caledônia. Já a eu atual, depois do ler o e-mail da minha amiga, quase correu para uma agência de viagens.
O que eu quero dizer é que, sim, éramos outros antes, mas não significa que éramos melhores apenas por sermos mais novos. De minha parte, não tenho saudosismo nenhum por aquela outra eu, nunca lhe concedi o monopólio da minha juventude e do meu entusiasmo. Era apenas uma eu com menos idade e um corpo que combinava mais com aventuras, e daí? Aventurava-se quase nada, a criança. Tendo muito tempo pela frente para aproveitar, escolheu ser cautelosa na primeira parte da vida, e foi. Cumpriu os rituais todinhos sem se arriscar e agora me passou o bastão: “Tudo contigo, minha cara. Fui teu lado formiga, agora seja meu lado cigarra”.
Podemos ser “outra” em qualquer fase da vida, e a ordem dos fatores pode alterar o produto, sim. A maioria de nós desfruta de forma inconsequente os seus primeiros 30 anos e depois se acomoda e fica vivendo de recordação – e sofrendo com a proximidade da morte. Fiz diferente: fui acomodada na adolescência e, quando a maturidade chegou, é que comecei a me divertir pra valer.
A outra que sou agora é bem mais disposta do que a outra que já fui. E mal posso esperar pelas outras que ainda serei.
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