Há 16 anos, publiquei uma crônica em que citava coisas que tinham demônio, em detrimento de outras. Tipo: cinema tem mais demônio que televisão, poesia tem mais demônio que autoajuda, Janis Joplin e Billie Holliday têm mais demônio que Celine Dion e Whitney Houston, a ironia tem mais demônio que o pastelão, Manhattan tem mais demônio que Berna, a paixão e o sexo têm mais demônio que o amor. Não foi preciso explicar a subjetividade do conceito que eu estava aplicando: confiei na inteligência dos meus leitores e todo mundo entendeu, curtiu e até me enviou outros bons exemplos.
Voltei a pensar nisso, pois na época incluí o Brasil como um país que, graças a Deus, tinha demônio. Apesar dos problemas de sempre, éramos um país apimentado, com uma atmosfera irreverente, uma estética psicodélica, uma cultura pluralista e era isso que nos diferenciava das outras nações. Nosso despudor era um capital, deixava a todos atentos, ninguém pegava no sono ao escutar a palavra Brasil. Não faço aqui a exaltação da vulgaridade, e sim de um espírito naturalmente anárquico que nada tem a ver com falta de educação e atitudes ilícitas. Anarquia como delírio criativo, ousadia, inspiração. Éramos o país do carnaval, do tropicalismo, do folclore regional, do samba, da libido – um país quente, feliz e com tesão.
Éramos.
Estamos perdendo nosso demônio para os caretas e covardes (Senhor, piedade), para os pastores que catequizam seus rebanhos a fim de transformá-los em tementes da livre expressão e da arte que ousa ir mais longe – independentemente de ter qualidade ou não. Só se avança rompendo limites. Mas, em vez de expandirmos, estamos perdendo a saliência e buscando o caminho da banalidade e do puritanismo infértil. Caminhamos rumo a um autoritarismo travestido de ordem, mas que visa apenas engessar aqueles que pensam e vivem fora da caixa. Em vez de um país alegremente atrevido, estamos nos transformando num país castrado. Um país de pau mole.
Moralizar o Brasil é uma emergência: devemos seguir combatendo a corrupção e denunciar a troca de favores entre parlamentares que só desejam perpetuar seu pseudopoder e continuar forrando os próprios bolsos. Essa é a nossa verdadeira vergonha, a maior das indecências. Porém, não é transformando o país numa igreja que iremos nos salvar. Confundir moralidade com censura e rigidez será a nossa perdição. Moralidade na política nada tem a ver com manter a população enquadrada e em estado de anemia. Não é asfixiando nossas inquietações produtivas que iremos entrar no primeiro mundo, ao contrário, será o atestado da nossa burrice. Um país que perde a capacidade de subjetivar é um país condenado à mediocridade eterna, amém.
Lutemos pelo nosso demônio sagrado.