Cena da peça “A Reunificação das Duas Coreias”, do francês Joël Pommerat: é noite, o marido e a esposa retornam de um jantar e a babá está aguardando-os, sentada numa cadeira da sala. Indo direto ao quarto dos filhos, a esposa dá pela ausência deles. Volta para a sala e pergunta para a babá onde estão as crianças. A babá, atônita, não responde. A mulher e o homem começam a gritar com ela. A babá não sabe o que dizer. O homem pega o telefone e chama a polícia, a esposa chora e a babá segue constrangida. Eles continuam berrando com ela: “Onde estão nossos filhos??” Ela, então, responde: “Que filhos? Vocês não têm filhos. Vocês me contrataram para ficar aqui como se houvesse crianças, mas elas não existem. Aceitei essa palhaçada porque estou precisando de dinheiro”. A polícia já está batendo à porta, mas o casal não abre, agora estão ajoelhados em frente à babá, implorando para que ela não destrua a farsa. O texto deles é um soco.
“Se você tirar nossos filhos, nossa vida vai parar. Não existiremos mais. Nossa história perderia todo o sentido, tudo desabaria. Nossa vida não teria mais nada de real, nenhuma justificativa, acabaríamos nos perdendo um do outro. No fundo, não temos nada de importante a nos dizer, nada a compartilhar, nada em comum. Nada de importante para fazermos juntos, nada de verdadeiramente necessário e crucial sem nossos filhos. Nos tornaremos dois estranhos, dois fantasmas.Tememos isso como a morte. Não queremos perder nosso casal, isto é o que nos mantém vivos. Você sabe que um casal é como um ser vivo. É um parâmetro essencial, é uma luz que chama a atenção dos outros para a sua existência. Nosso casal se construiu com base nos nossos filhos. Então, sem filhos, nós desaparecemos, não temos identidade própria. Isso não lhe causa nenhuma compaixão? Por favor, devolva nossos filhos”.
É perturbador ver alguém implorando para que lhe devolvam uma ilusão.
Cruzamos com vários casais pelas ruas sem conhecer as mentiras que sustentam suas existências. Para não perderem “o casal”, alguns homens e mulheres fazem vista grossa para a ausência de amor e para os desejos particulares que cada um abafou. Horrorizam-se com a possibilidade de não terem projeção social caso retornem ao mundo dos solteiros. Enquadrados, sentem-se mais seguros.
Famílias são bênçãos, são projetos conscientes de vida, mas também podem ser formadas apenas a fim de constituir uma prova de ajustamento. Através da família, pertencemos a um mundo idealizado. Quem se desmembra deste mundo carrega consigo a sombra de um defeito moral. É visto como um desgarrado, um solitário, essa gente estranha que assusta, pois são livres demais.
Por isso, alguns “ajustados”, não tendo coragem de ser sós, recorrem à farsa. Há uma pequena nação de covardes por trás das cortinas.