Somos feitos de vários pedaços, e esse recorte é o que há de mais íntegro em nós: os cacos, as partes, o quebra-cabeça da nossa vida em constante montagem, peças que ora se encaixam, ora não levam a nada. As cores variadas da nossa alegria convivendo lado a lado com dores monocromáticas, o contorno de nós que vai se revelando à nossa revelia. Revelando à revelia: com boa vontade, isso é até poesia.
Não sei você, mas é assim que me vejo em frente ao espelho: craquelada. Inteira, claro, mas de uma inteireza constituída por inúmeras células que se renovam, cicatrizes internas e externas, marcas de biquíni, cílios, lágrimas, dentes, sorrisos. Que caleidoscópio é um ser humano. Vira para um lado, vira pra outro, e o que parecia rígido transfigura-se.
Ontem, o Paulo Germano publicou em sua coluna o belo trabalho em mosaico idealizado por Silvia Marcon, que está exposto na fachada da Casa do Estudante Universitário, no centro de Porto Alegre, mas essa minha reflexão nasceu de uma visita ao Caminho das Serpentes, em Morro Reuter, um pedaço (vai vendo, mais um pedaço) da inteireza que chamamos arte. A 700 metros de altitude, está a casa de uma mulher que é puro talento e generosidade. Nada ela retém pra si, tudo ela compartilha, divide. Estou falando de Claudia Sperb, reconhecida artista plástica com trabalhos expostos em importantes centros culturais brasileiros e que transformou seu hábitat particular num espaço público aberto à visitação. Seu ateliê, com sua coleção de gravuras, xilos, litos, bonecos e desenhos, está à disposição do nosso olhar, e seu enorme jardim abriga um delirante parque de mosaicos: tudo é lúdico, colorido, inspirador. Escolas organizam passeios com crianças, mas adultos também procuram o local a fim de fazer piqueniques, relaxar ou assistir a algum show ao ar livre, que eventualmente acontece numa plataforma com vista para toda aquela linda região.
E ainda se pode dormir lá, porque há quartos, é uma pousada também.
Vá até o Google e digite Caminho das Serpentes para visualizar o que aqui tento traduzir em palavras. Achei a atmosfera parecida com a do Parque Güell, de Barcelona, numa versão em miniatura, mas não menor. Toda arte é grande, transcendente, e, nestes tempos em que estamos mergulhados no lamaçal político, no descontrole do Estado diante da violência, na ameaça de um retrocesso brutal de costumes, de pensamento e de liberdade, na escuridão de um futuro ainda sem luz no fim do túnel, visitar um local mágico é um conforto pra alma.
Se nada parece ter solução, ao menos há escapadas possíveis. Pedacinhos de felicidade, caquinhos mesmo, que a gente emenda um no outro até compor o que somos.