:: Martha Medeiros: Nós, os primogênitos :: Martha Medeiros: A cultura da humilhação :: Martha Medeiros: Inquietude pré-embarque
Antes da era tecnológica, a gente via os amigos de vez em quando, em encontros eventuais. Agora, eles estão na palma da mão. Sabemos tudo o que eles pensam e o que fazem, as informações são atualizadas em minutos, e o resultado disso? Fé na humanidade.
Se depender de você, de mim e de nossos 3.768 amigos, ou 7.543, ou 21.544 (quantos amigos você tem?), o mundo está salvo. Porque, veja bem: somos todos bons. Somos todos justos. Somos todos inteligentes. Somos todos amorosos. Somos todos honestos. Escândalos políticos não têm nada a ver com a gente: somos todos críticos, atentos, lúcidos. E estamos todos estupefatos, lógico. Acreditávamos que a sociedade era íntegra, já que somos todos íntegros.
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Todos nós amamos os animais, adotamos cachorros de rua, gatos abandonados, porquinhos-da-índia. Cuidamos deles, nos importamos com eles, temos por eles um amor que se equipara ao amor que sentimos por nossos filhos. Ah, nossos filhos. Somos todos pais espetaculares de filhos que não se drogam, não bebem, não são jovens indiferentes, não são preguiçosos, não são acomodados, não estão perdidos, não são sedentários. Foram crianças excepcionais e não poderia dar noutra coisa: hoje são adultos incríveis. É de família. Bênção do DNA.
Somos todos ecologistas, amantes da natureza, adoradores de crepúsculos, mares, florestas. Não pisamos na grama, não poluímos os rios, não jogamos bituca de cigarro no chão, somos a favor da energia eólica e solar, reverentes às flores, às montanhas, às cachoeiras, às árvores. Tudo documentado em fotos, milhares delas.
Somos a favor dos refugiados, das empregadas domésticas, dos gordos, dos gays, dos pobres, das mulheres, das crianças, dos negros, dos chineses, dos sírios, dos mendigos, dos feios, dos albinos, dos haitianos, dos anões, dos favelados, dos nudistas e demais minorias – minoria é gente à beça.
Somos todos conscientes e defendemos os direitos humanos.
Somos todos bem-amados, bem-humorados, temos bom gosto. Todos nós respeitamos as regras de trânsito. E o nosso time só perdeu porque o juiz roubou.
Não temos religião, mas somos espiritualizados. Não fazemos parte de nenhuma ONG, mas vestimos a camiseta. Dirigimos carros, mas damos a maior força para as ciclovias. Não somos vaidosos, apenas usamos nossa imagem a fim de enaltecer boas ideias e intenções. Estamos a serviço de um mundo melhor. Somos todos messias. Todos gurus.
E todos nós votamos corretamente nas últimas eleições.
O inferno são os outros. Jamais você, eu e nossos amigos. Os 3.768, os 7.543, os 21.544 que estão conectados, que vivem na bolha da autorreverência e não possuem defeitos, a não ser este, que é meio suspeito: o de não ter defeito algum.