Agora que lancei um livro de cartas em parceria com a psicanalista Diana Corso (Da Sempre Tua, pela editora Arquipélago, mil perdões pela propaganda pouco subliminar), fico com vontade de escrever cartas para Deus e o mundo.
É tanto tempo mandando mensagens no WhatsApp, poucas linhas para não chatear o interlocutor – isso quando não são áudios –, que escrever cartas acaba sendo uma terapia.
Fico imaginando cartas para a operadora de internet. Para a de energia, ah, a de energia. Para quem fatia o queijo com um dedo de espessura – e dedo grosso. Para o prestador que diz que vai terminar o serviço e nunca mais. Ninguém sabe, ninguém viu. Por exemplo, o que jurou terminar a montagem dos móveis há mais de meio ano e tomou um destino ignorado.
Estimado F., como tem passado nesses meses todos? Eu e minha família sempre lembramos de você. Não sei se ainda recorda, mas faltou instalar as portas e as prateleiras do armário do nosso quarto. Cada vez que a gente olha para aquele bololô de roupas, pensa: ah, o F. Minha esposa às vezes cogita ligar para a sua, perguntar se a casa de vocês está com tudo em cima. A nossa não está, você bem sabe, e a minha mulher fica muito emotiva com isso. Ela só não ligou ainda porque tem medo de exacerbar a emoção. O meu mais velho, o Ziquinho, está dormindo em cima das tábuas da cama que você não montou. Por sorte a coluna dele ainda é um aço – talvez não tanto quanto já foi, depois desses últimos tempos. Queria ver com você se podemos combinar a montagem desses dois móveis, mais a da mesa da sala, do paneleiro e das cadeiras da cozinha. Também queria pedir para você trazer de volta a persiana do quarto da pequena, que você levou para pintar e nunca mais. Desde então a minha filha de quatro anos acorda com o nascer do sol, e você pode imaginar quem ela tira da cama para brincar nessa hora. Eu tenho um grande amigo, delegado de polícia, que quer muito conhecer você. Se você não aparecer, de repente a gente pinta de surpresa aí. Pode esperar. Sempre aguardando por notícias tuas, J.
Outro que mereceria uma cartinha é aquele motorista que quase te atropelou na faixa de segurança.
Caro Senhor, tudo bem com o seu dia? Impressão minha ou nessa terça-feira, nem oito da manhã, o senhor já está acometido de uma profunda irritação com a humanidade? Entendo que o senhor gostaria que todos nós, pedestres, sumíssemos do meio da rua no momento em que o seu possante alguma-coisa-hatch prata surge no horizonte, mas né? O senhor não vai curar esse seu ressentimento por tudo o que não deu certo na sua vida passando por cima dos outros. Quanto às palavras que o senhor dirigiu à minha pessoa, agradeço por me fazer valorizar o quão polido é meu filho pré-adolescente de 13 anos, que eu julgava desbocado, mas que é um príncipe perto do que sai da sua boca de lobo. Fico achando que algo muito intenso deve estar a perturbá-lo para que o senhor esteja tão nervoso. Ou seria algo muito, muito pequeno? Sem mais para o momento, só a vontade de que o senhor nunca mais cruze o meu caminho e o desejo sincero de que ninguém mais passe por esse desprazer, um forte abraço. PS: Não saia de casa sem o seu Rivotril amanhã.
É um divertimento parnasiano esse de imaginar cartas para quem nos incomoda ou, melhor ainda, para quem merece o nosso amor. Sem falar que a carta não chega com barulho de WhatsApp, o que é uma grande vantagem. Sem mais para o momento, um beijo e até a semana que vem.